De sons da rua a árvores da vida, uma liga joga para a inclusão

Há um pontapé de saída que marca o início da semana, um acorde de guitarra o meio e um desenho o fim. Com a Liga Para a Inclusão Social, tudo é possível fazer, basta levar oportunidades a quem as perdeu.

Texto: Ana Martins Ventura | Fotografia: José Ferreira 

Com os Som da Rua todas as pessoas podem cantar 

Alinham-se cadeiras, afinam-se instrumentos. Entoam-se os primeiros versos de “Renascer”, símbolo do regresso à normalidade, e os talentos despertam. Quarta-feira é dia da Liga Para a Inclusão Social espantar males a cantar no edifício da AMI, em Campanhã, no Porto, e há quem venha de Santa Maria da Feira para se unir aos beneficiários do Centro Porta Amiga e do Abrigo do Porto

O espetáculo dura pouco mais de uma hora sob a batuta dos Som da Rua, grupo da Casa da Música que toca e canta há quatorze anos com tenores, contraltos e fados sem regra. Talentos descobertos entre quem nunca teve a oportunidade de os explorar. Para Jorge Prendas, coordenador do Serviço Educativo da Casa da Música e responsável pelo projeto Som da Rua, a “música é uma das melhores portas para unir e integrar quem está sozinho”. Mas, a Liga Para a Inclusão Social vai além do Projeto de Inclusão Social (PIN) da música, também interliga histórias de vida a partir do futsal, artes plásticas, teatro e dança. 

“São vinte e duas instituições públicas e particulares, da região norte do país, unidas por carolice, porque nada ganham com isso”, conta Susete Santos, diretora do Abrigo do Porto da AMI, “com o objetivo maior de proporcionarem aos seus beneficiários atividades que não teriam possibilidade de desenvolver por conta própria”. 

João Oliveira acompanha os ensaios com o Som da Rua, mas é à segunda-feira, no treino de futsal promovido pela Associação de Futebol do Porto no âmbito do projeto Liga Para a Inclusão Social, que revive as melhores recordações da sua juventude quando “jogava num clube distrital”. Aos quatorze anos, vieram “as responsabilidades de adulto”, e de uma aldeia de Trás-os-Montes rumou ao Porto, para trabalhar. 

“Nunca tinha visto uma peça de teatro, quanto mais fazer parte de uma”

Carlos Ferreira 

Perto dos 60 anos, esta é “uma forma de matar saudades, construir novas amizades e afastar os pensamentos do que não correu bem”. João Oliveira está no Abrigo do Porto há dois anos. O divórcio, depois o desemprego e por fim o alcoolismo criaram um rol incontrolável que o levou às ruas. 

Os dias de João Oliveira são passados com foco num novo emprego. Gostava de regressar aos hotéis, onde trabalhou a vida toda. As entrevistas de trabalho vão aparecendo, mas tem sempre “idade a mais ou experiência a menos em algum novo programa de computador”. 

Nuno Vasconcelos assume ter “interesse especial por coisas novas”, por isso aceitou logo entrar na Liga Para a Inclusão Social. O futsal traz recordações da juventude, a música traz um grande convívio. Não se trata apenas de cantar, “são feitos instrumentos de raiz, escreveram-se letras e compõem-se músicas”. 

A arte e o desporto têm aliviado a Nuno o constrangimento de estar no abrigo. Perdeu a casa há um ano porque “o patrão deixou de pagar certo”. Ao longo do mês, “o dinheiro entrava a conta gotas e ainda assim tinha de insistir”. As contas acumularam-se e quando confrontou o patrão, ficou a saber que ele é que “devia à empresa”. Não conseguia pagar a renda da casa e foi despejado. 

“Já tinha vivido situações complicadas”, mas nunca a ponto de ficar sem dinheiro para pagar uma casa”. Desta vez, a especulação imobiliária deixou qualquer solução fora do seu alcance. Está a fazer formação, com a esperança de conseguir um emprego melhor e assim, talvez uma nova morada. 

Um grão de areia para uma alma do palco

De Campanhã para a Casa da Música, a música acompanha o maestro Jorge Prendas. Há um contínuo ensaio na casa onde “as pessoas devem ser mais do que espectadoras. Devem ser criadoras”. Acredita que “a música deve ser utilizada como uma ferramenta de inclusão”, mesmo sendo “um grão de areia num enorme areal, capacita as pessoas para responderem a desafios de socialização ao longo da vida”. 

Carlos Ferreira acompanha o maestro à Casa da Música. A sua alma é de celebrações, gosta de palcos, “especialmente da música e do teatro”. Antes da Liga Para a Inclusão Social “nunca tinha surgido a oportunidade para cantar, tocar um instrumento ou ver uma peça de teatro, quanto mais fazer parte de uma”. Entretanto, já conseguiu subir ao placo duas vezes. A primeira, numa ficcionada viagem de Metro com conversas cruzadas. A segunda, como contador da sua história de vida. 

Carlos Ferreira conta a história da sua vida no palco 

O Abrigo do Porto também é um lar temporário para Carlos Ferreira. Em formação, espera o mesmo que Nuno Vasconcelos, “uma oportunidade para deixar o trabalho precário e voltar a ter casa”. Enquanto esse tempo não chega, sobe e desce as engrenagens dos carrosséis que, há décadas, ajuda a montar em tempo de festas e feiras. 

Ao contrário de João, Nuno e Carlos, Laurinda Gradim tem casa e está reformada, a Liga Para a Inclusão Social surgiu na sua vida como uma oportunidade para “impedir que a solidão ganhe espaço, pois ela pode ser devastadora”. 

Laurinda Gradim encontra na música a cura para a solidão 

Durante alguns momentos, pessoas de diferentes lugares cruzam histórias, essa é a essência da Liga. 

Todas as semanas Laurinda Gradim vai de Santa Maria da Feira até ao Porto, com a associação Ser Mais Pessoa. Vive sozinha e “o ensaio é o momento de conviver e conversar, além disso, cantar deixa as pessoas libertas das amarguras da vida, é um momento para esquecer sofrimentos e recordar que somos todos iguais”. 

As árvores também dão mãos 

Com a Liga para a Inclusão Social também estão a nascer árvores da vida. As folhas serão mãos e cada uma representará um mundo. O conceito nasceu de um desafio lançado pela Liga Para a Inclusão Social à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, “para criar algo que unisse todas as instituições participantes”, recorda Susete Santos. 

Nuno Vasconcelos deu os primeiros passos na Liga Para a Inclusão Social precisamente a criar uma das árvores da vida. Começou por colocar as mãos no barro até ver o resultado final criado em gesso, “um pedaço da escultura que reunirá o trabalho de todos os participantes”. 

Rui Ferro ajuda a transformar moldes de gesso em folhas para árvores da vida 

Fazer parte da escultura que tem como lema “cada pessoa é um mundo e existe um mundo para salvar” é uma oportunidade para se redescobrir, afinal “imaginava lá que podia produzir algo para toda a gente ver e apreciar”. 

São 104 mãos, 104 folhas de árvore. Entre moldes, Rui Ferro, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e responsável pelo PIN das artes plásticas detalha que “cada mão é a criação de alguém que, antes da Liga, apenas tivera contacto com as artes plásticas a um nível mais ocupacional do que artístico”. Para o professor, “é sublime” terem construído algo que vai estar num espaço expositivo e contar um pouco da sua história. 


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