Rainhas da terra

Mulheres de uma geração que guarda os segredos de Bolama, Maria Eugénia e Fatumata veem nas tradições e no empreendedorismo, no feminino, uma “recuperação da alma da terra”.

Texto Ana Martins Ventura

Esculpidas pela alma de Bolama, Maria Eugénia Melo e Fatumata Baldé querem que a ilha guineense recupere “pelo menos um pouco do antigo esplendor”, de quando foi a primeira capital da Guiné-Bissau. Guardiãs da comunidade, elas apostam no empreendedorismo e no reviver de tradições, no lugar onde ficou esquecida a história partilhada da Guiné-Bissau com Portugal, Itália, Inglaterra e Estados Unidos da América.

Maria Eugénia é ‘Rainha da Tina’, tradição secular de música, na qual se toca, canta e dança sobre histórias do quotidiano. Fotografia: Armando Redondo

Ao rimo da Tina ou dominando os segredos da gastronomia guineense, o segredo de Fatumata é nunca parar, nem deixar os “nãos” travarem os sonhos. Dominando a gastronomia guineense, Fatumata contradiz a desigualdade e a discriminação, numa terra onde “as mulheres sempre foram pilares da comunidade, mas nos bastidores”.

Maria Eugénia é uma eterna professora, com coragem para, nem mesmo depois de reformada, deixar a profissão. Ensinou Educação Visual, mais tarde Caligrafia e, depois da reforma, “Prática Pedagógica para ensinar as novas gerações de professores a darem aulas”. Reconhece que foi uma privilegiada por conseguir trabalhar no que escolheu. “Em Bolama, é difícil as mulheres terem uma profissão. Empreendedoras são, afinal é isso que lhes resta: com pouco fazer muito”.

As mulheres criam o seu próprio emprego vendendo produtos, mas, nem aí o conseguem fazer com as condições certas, porque “não existe um centro comercial ou mercado coberto, as mulheres reúnem-se na rua com as suas bancadas improvisadas e aí vendem legumes, amendoim, óleo de amendoim, peixe”.

Se em 1976, quando Maria Eugénia começou a dar aulas, uma mulher afirmar-se como professora era algo extraordinário, que apenas conseguiu porque o seu pai era funcionário público e, por isso, “em casa havia algumas condições financeiras”. Hoje, o Fundo das Nações Unidas para a População indica que, na Guiné-Bissau, “a taxa de analfabetismo continua a ser elevada entre a população do sexo feminino”, a mesma população onde 52,1% das mulheres casam, pela primeira vez, aos 15 anos.

Mil talentos

É preciso conhecer a terra e o que se pode fazer com ela, dominar diferentes artes, da pesca à agricultura. “Muitas mulheres assumiram o sustento total das famílias depois dos homens serem mortos [na guerra civil] ou emigrarem” e nunca mais Bolama foi a mesma para Maria Eugénia que recorda o tanto de pessoas que iam e vinham e hoje são cada vez menos. Os homens que partiram, “o fecho da escola de enfermagem e do hospital e, em consequência, de tantos negócios que deles dependiam, não ajudaram a terra”.

Fatumata mudou a vida dos cinco filhos, com a oportunidade de fazerem cursos universitários. Fotografia: Direitos Reservados

Na Bolama de hoje, Fatumata, cozinheira de alma e coração, vê as crianças terminarem a escola e partirem para a cidade ou para além-fronteiras. E até a tradição milenar da Tina pouco a pouco se recolheu a um silêncio que apenas há poucos anos começou a ser quebrado.

Com um projeto promovido pela AMI em parceria com a Associação Pro-Bolama e financiado pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, “em 2022 começaram a unir-se diferentes grupos de Tina. Elegeram-se rainhas e a tradição renasceu”.

“Bolama Ka Pudi Pirdi Tina” (na tradução do crioulo guineense para português “Bolama não pode perder a Tina”), trouxe de novo o som da Tina às ruas.

Para a cozinheira, mestre dos sabores que contam a história da antiga capital da Guiné-Bissau, “não é só na música que se deve fazer reviver a força da terra, a gastronomia também precisa ser apoiada”.

Antes de trabalhar como cozinheira, Fatumata plantava legumes que vendia no mercado, fazia óleo de amendoim para e, quando podia, plantava amendoim e caju também para vender.

Quando o marido morreu, Fatumata criou sozinha cinco filhos, hoje três professores, uma enfermeira e um futuro licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas, a terminar o curso em Vila Real.

Os filhos começaram a sair de casa e Fatumata preencheu os seus dias cuidando de outras crianças que precisavam de uma ama. Ao mesmo tempo, mantinha as vendas no mercado e, mais tarde, a cozinha.

Dessa forma, Fatumata conseguiu dar aos filhos “a oportunidade de terem uma vida diferente, melhor” e contrariar os índices de pobreza, que colocam as mulheres da Guiné-Bissau como as mais afetadas pela situação de carência.

Num país onde 69% das mulheres não tem acesso à terra, Fatumata contrariou a regra. A lei prevê acesso igual à propriedade, no entanto, segundo a Associação Para a Cooperação Entre os Povos, existem tradições e costumes que impedem uma concretização real da legalidade. Tradicionalmente, as mulheres não têm direito a herança e posse da terra, apenas ao seu uso.

O que em tempos colheu da terra é hoje o segredo da sua cozinha. “A culinária da Guiné-Bissau é o mais natural possível e esse é o nosso segredo, claro que há sempre algo mais, o amor tem que estar sempre presente na cozinha”. E a maior recompensa é quando “as pessoas ficam felizes com a comida”.

Fatumata e Maria Eugénia refletem em si a alma da terra. Guardiãs das suas raízes, empreendedoras, tal como milhares de mulheres guineenses, elas não desistem de contrariar os números que colocam as mulheres como grupo mais desfavorecido da sociedade guineense. Um estudo da Associação Para a Cooperação Entre os Povos, Mulheres da Guiné “No Lanta”, Liga Guineense dos Direitos Humanos, Associação das Mulheres Profissionais de Comunicação Social e Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, indica que 23% das famílias guineenses são chefiadas por mulheres, mas a pobreza ainda incide sobre cerca de 69% das mulheres do país porque elas exercem atividades económicas que geram menos rendimentos.


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