Guardiãs da terra e do mar

Nos bastidores ou na linha da frente, com sonhos concretizados ou refletindo vitórias nas conquistas dos filhos, elas não têm tempo para sentir medo. As guardiãs da educação, ambiente, sustentabilidade, história e cultura dobram o cansaço e provam que os direitos das mulheres estão vivos, em tempos de esquecimento.

Texto Ana Martins Ventura | Fotografia José Ferreira

Dina e Sandra são guardiãs do mar, Olena é guardiã da luta contra a violência, Fatumata e Maria Eugénia são rainhas de antigas tradições. Se os direitos que se têm conquistado não são fáceis de manter, não é por falta de esforço, “as mulheres são aguerridas nas lutas que travam”, assim defende Alexandra Alves Luís, da Associação Mulheres Sem Fronteiras. Mas, depois, “os constrangimentos sociais empurram-nas para os cantos, com formalidades políticas e legislativas que não se traduzem em ações reais, para mudar o seu quotidiano”.

Em Setúbal, uma comunidade está a mudar o seu futuro desde que as mulheres abraçaram a missão de guardiãs. Representam a frente de uma causa ambiental, assumindo autoridade e saberes a bordo de embarcações em tempos apenas governadas por homens, onde as mulheres até já foram “sinal de mau agouro”.

Sandra Lázaro (esq.) e Dina Santos (centro) defendem o mar que traz o sustento à sua comunidade

Filhas de pescadores, nascidas e criadas na pesca, Dina Santos e Sandra Lázaro cresceram no tempo da liberdade a ouvir histórias de quando as mulheres não votavam, não estudavam, não comandavam. Hoje, sentem orgulho na liderança comunitária que conquistaram como representantes de um projeto da Ocean Alive, o “Mariscar Sem Lixo”, sobre a defesa das pradarias marinhas, os pequenos campos relvados que cobrem parte do fundo do estuário do Sado, onde os peixes procuram abrigo para desovar. Ajudaram a mapear fundos, a catalogar espécies, a limpar ancoradouros e assumiram a educação ambiental da comunidade. Desde 2018 contribuíram para retirar do Sado e do Atlântico mais de 65 toneladas de lixo marinho.

Sandra Lázaro chega ao cais conhecido como Rampa das Baleias em Setúbal, com um saco de enxarrocos. Frutos de uma manhã na água a vigiar, guardar e salvaguardar, onde a sua alma aquariana não pode deixar de retirar algo do mar. Já em terra com Dina Santos, companheira nas voltas de guardiã do mar, deita olho a “umas ostras que já devem estar feitas, mesmo à mão, à babuja”.

É da “malta da borda d’água”, pescadora desde os dois anos, assim se considera desde que começou a andar num barco de pesca, com a mãe e o padrasto. Com 51 anos de faina na pele confessa “tenho uma paixão pelo mar e pelo Sado que não sei explicar”.

Depois de oito anos de insistentes conversas entre amigos, vizinhos, família e companheiros de mar, sente-se orgulhosa porque “hoje, se falar com um idoso da borda d’água ele reconhece o conceito de pradarias marinhas, e o quanto elas representam para sobrevivência da nossa comunidade”.

“As mulheres são o motor da sustentabilidade e queremos vê-las navegar”

Raquel Gaspar, fundadora da Ocean Alive

Desde sempre que os pescadores sabiam que as ervas do fundo do Sado eram importantes, porque o peixe desovava lá “então sempre procurámos proteger à nossa maneira as pradarias marinhas, que conhecemos como sebas”. Como? A comunidade piscatória sabia que “quando a maré enchia, o peixe entrava nas sebas e quando a maré vazava saía e era aí que o apanhavam”. Agora, as sebas são conhecidas por serem não só um berçário, mas “o pulmão azul”, pois “três hectares de sebas produzem oxigénio para 182 pessoas”.

O que não estava ainda enraizado na comunidade é que, na maré baixa, durante a mariscagem, arrancar as sebas para alcançar a ameijoa mataria o futuro daqueles berçários de peixe.

“Ao arrancar das sebas juntava-se o acumular de garrafas de plástico no fundo do Sado, utilizadas durante a mariscagem e depois abandonadas e foi na gestão do lixo que a consciencialização mais custou”, recorda Dina Santos perante a recuperação de mais de 58 mil garrafas de plástico que inspirou a mudança de comportamentos.

“Ao início foi muito complicado mudar hábitos, principalmente nas pessoas mais velhas. Elas acham que sabem tudo, porque vivem cá há muitos anos e sempre fizeram assim”, mas os saberes complementaram-se.

“Hoje, somos acarinhadas pela comunidade piscatória e pela população em geral, não só de Setúbal, de todo o país, que nos procura para conhecer melhor o que é isto das pradarias e para participar nas ações de observação do Sado e recolha de lixo”, conta Dina que, aos 52 anos, é a terceira geração de uma família de pescadores.

Do Sado para a Ria

Para Dina e Sandra, muito do que acontecia era culpa da falta de acesso a informação, comum nas comunidades onde as famílias têm dificuldades económicas, “não é uma questão de género, é uma questão da pobreza profunda”.

Este projeto da Ocean Alive, financiado pela AMI através do No Planet B, para o mapeamento e proteção das pradarias marinhas, mudou a região de Setúbal e seguiu por outras marés. Raquel Gaspar, bióloga, fundadora da Ocean Alive, está a acompanhar “uma nova geração de guardiãs, na ria de Aveiro, a quem já foi colocado o nome de “guardiãs da ria”, inspiradas pelas guardiãs do mar”.

Para Raquel Gaspar “as alavancas do projeto da Ocean Alive em prol das pradarias marinhas são as mulheres”. E não podia d ser e outra forma. Na raiz do projeto está uma mulher e “nós, mulheres, somos aquilo que fazemos”, defende.

“As mulheres são o motor da sustentabilidade e queremos vê-las navegar”. Parece uma frase comum, mas foi o que levou Raquel Gaspar a pensar que “tinham que ser as mulheres a levar o projeto da Ocean Alive adiante”. Sobretudo porque elas estão dentro das comunidades piscatórias, vêm de famílias com gerações de pescadores. São filhas, mães, irmãs e esposas de pescadores. Elas próprias foram ou ainda são pescadoras e mariscadoras”.

Sandra Lázaro lamenta que haja poucas mulheres no mar. Os tempos são outros, mas dessa forma parece que se perdeu terreno.

“Antigamente havia mais mulheres a irem para o mar. As mulheres acompanhavam os maridos e criavam os filhos no barco. Entretanto, foi aparecendo indústria e a pesca tornou-se mais difícil, a vida mais cara, então tinha de haver alguém, em casa, com um ordenado certo”, assim aconteceu na família de Sandra. A mãe deixou a pesca para trabalhar numa fábrica e era difícil que assim não fosse, porque “não há homem nenhum que aceite uma mulher a governar um barco e ele a trabalhar em terra”.

Como guardiã, sente que, de certa forma, encurtou a distância que existia entre as mulheres e o mar e algo mudou no futuro da comunidade.

Como guardiãs reescrevem a História pelo mundo

Olena foi vítima de violência doméstica e sentiu na pela discriminação

Se Dina e Sandra não deitam redes sem pensar na alma do mar e no futuro da pesca, em diferentes pontos do país e do mundo, outras guardiãs assumem missões contra a violência e a favor do empoderamento.

Na Ucrânia, onde existe uma sexualização da mulher, Olena sempre sentiu “grande pressão social para responder a padrões de beleza, de inteligência e de casamento”.

A viver em Portugal há vinte anos já sentiu também pressão social, mas não por causa compromissos impostos pela sociedade. Sentiu “o peso do estereótipo da mulher ucraniana que vem para seduzir”. A trabalhar na restauração “ouvia bocas e piropos constantemente que, não eram tratados com a devida gravidade”.

Mas, os momentos em que sentiu que ser mulher deixava-a num lugar de vulnerabilidade, “e sobretudo por ser mulher imigrante”, aconteceram em casa e na esquadra de polícia. Vítima de violência doméstica, não foram raras as vezes em que, “por apresentar queixa à frente de homens, em situação de poder, sentia que não era levada a sério”. Via “sorrisos disfarçados e ouvia comentários velados sobre homens e mulheres”.

É por isso que assume a missão de “sobrevivente orgulhosa”, ao ser guardiã das mulheres vítimas de violência.

Fatumata e Maria Eugénia conhecem bem “a luta pelos direitos das mulheres de que sempre se fala, mas pouco se vê realmente concretizado, especialmente na Guiné-Bissau”.

Entristece Maria Eugénia, ver quem é a “alma da terra, o garante da economia local não ser considerada. Uma autoridade em Bolama, aos 69 anos, é considerada na comunidade como líder a quem muito se deve perguntar quando é preciso tomar decisões, mas porque teve oportunidades privilegiadas. Em 1975 formou-se professora e decidiu dar aulas em diferentes pontos da Guiné-Bissau.

Passados quase cinquenta anos desde a sua conquista profissional, a Maria Eugénia parece-lhe que “em vez de as jovens raparigas estarem a conseguir conquistar novos rumos, estão a perder o espaço que ganhámos há décadas”.

Gostava Fatumata de ter passado pelas mesmas oportunidades. Diz que vingou as injustiças do seu tempo com as conquistas dos cinco filhos. “Todos formados na universidade, nenhum ficou para trás e é assim quem vão provar a força das mulheres que seguram as comunidades”, orgulha-se.

Cozinheira de profissão, ama de muitos meninos e meninas de Bolama, também tem autoridade em alguns rumos da ilha. E, em dias de festa, tal como Maria Eugénia, é na música que coloca os seus lamentos e alegrias. Tocando e cantando na tradição da Tina, erguem os seus lugares como guardiãs da comunidade.


Faltam ações para proteger os direitos das mulheres

Através da associação Mulheres Sem Fronteira, Alexandra Alves Luís promove o empoderamento de mulheres

Se os direitos que se têm conquistado não são fáceis de manter, não é por falta de esforço, “as mulheres são aguerridas nas lutas que travam”, assim defende Alexandra Alves Luís, cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras. Depois, “empurram as mulheres para os cantos, com formalidades políticas e legislativas que não se traduzem em ações reais, para mudar o seu quotidiano”.

O relatório “Igualdade de Género em Tempos de Crise”, publicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) revela a discriminação baseada no género em instituições sociais em 179 países, incluindo Portugal que está classificado com um nível de discriminação muito baixo, face à média mundial.

Segundo o documento, é na esfera familiar que as discriminações são mais acentuadas, com as mulheres a dedicarem 2,6 vezes mais horas aos cuidados não remunerados e ao trabalho doméstico do que os homens.

Também segundo este documento, quando ocorrem catástrofes, as mulheres e as crianças têm 14 vezes mais probabilidades de morrer do que os homens. Enfrentam também muitas ameaças, como a violência sexual e baseada no género, casamentos precoces e forçados, a perda de meios de subsistência e de acesso à educação.

Neste contexto, a OCDE recomenda que sejam promulgadas leis a favor da igualdade de género, ou que sejam alteradas as existentes; que se transformem normas sociais discriminatórias em normas equitativas, incluindo os homens na promoção da igualdade de género e financiando a igualdade de género a longo prazo.

Recomendações de ouro para um país que, mesmo tendo um baixo índice de discriminação, segundo Alexandra Alves Luís, “trata as mulheres como uma minoria, depreciando as suas causas quando querem debater sobre aquilo que afeta as suas vidas, quando, na verdade, as mulheres representam uma maioria”, 52% da população em Portugal.


Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

You may use these HTML tags and attributes:

<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>