“Parece démodé falar sobre feminismo e direitos das mulheres”

Foi já adulta que conheceu o peso da palavra feminismo e “As novas cartas portuguesas”, assim como “As mulheres do meu país”, obras que gostava de ver presentes nas escolas, em vez de “colocadas num esquecimento histórico”. Alexandra Luís, cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras, lamenta que os direitos das mulheres em Portugal tenham sido um “não tema” durante a sua formação escolar e assim se mantenham.

Defensora das mulheres, até quando ditam o feminismo como “démodé”, a ativista afirma que elas ainda não são ouvidas nos fóruns onde se debatem e decidem as questões que envolvem as suas vidas e o ativismo. Do trabalho à família, habitação, saúde e violência de género, parece que muito foi conquistado, mas, na verdade, as mulheres são tratadas como uma minoria, num país onde 52% da população assina no feminino.

Texto Ana Martins Ventura | Fotografia José Ferreira

Olhamos muito para outros países quando queremos falar de direitos negados a mulheres, mas, e em Portugal?

Em plena Lisboa, há pouco tempo, tínhamos casos de pobreza menstrual. Mulheres, raparigas, sem dinheiro para comprar absorventes, usavam sacos de plástico que recortavam para vestir, toalhas, ou não usavam nada. As crianças também não tinham fraldas para usar.

No caso das crianças não é só uma questão de higiene, também não têm livros. Nem todas as crianças têm acesso a materiais lúdico-pedagógicos para brincar, pensar, conhecer os seus direitos.

Felizmente, conseguimos através da Secretaria de Estado da Igualdade e Migrações estabelecer uma parceria com uma grande superfície comercial e recebemos produtos de higiene, desde absorventes a pasta de dentes e até lixívia. Parece irrisória uma garrafa de lixívia, mas há pessoas sem dinheiro para isso, o pouco que têm está todo canalizado para a comida.

As pessoas acham que só noutros continentes e contextos de guerra é que se vive assim, mas acontece em Lisboa.

Porque é tão difícil as mulheres fazerem valer os seus direitos?

As mulheres imigrantes, as mulheres refugiadas, as mulheres negras, as mulheres lésbicas, as mulheres com algum tipo de diversidade funcional (as pessoas costumam falar em deficiência, mas não gosto desse nome), nós somos auto-representantes, temos que estar no debate das temáticas que nos dizem respeito.

Hoje em dia, é impensável debater acessibilidades sem que as pessoas que se deslocam em cadeira de rodas ou que são cegas, sejam ouvidas, porque elas têm a experiência na pele.

Enquanto mulheres também somos nós que vivemos na pele um conjunto de experiências que vão desde a saúde, à educação, às questões múltiplas da violência, da conciliação, do cuidado, das artes, da investigação. Existem discriminações e de formas de violência que nos afetam, simplesmente por sermos mulheres e, ainda por cima, não somos ouvidas nos fóruns onde se debatem estas temáticas.

“É difícil entender porque é que nas escolas os direitos das mulheres, a desigualdade, o feminismo, a violência machista, não estão sempre na agenda do dia”

Há um longo caminho a percorrer em Portugal, em nome das mulheres. Tratam-nos como se fossemos uma minoria e se considerarmos as meninas, as raparigas e as mulheres, nós somos a maioria da população.

É difícil entender porque é que nas escolas os direitos das mulheres, a desigualdade, o feminismo, a violência machista (como dizem os espanhóis), não estão sempre na agenda do dia.

É cliché falar de feminismo, ou vivemos, de facto, num tempo em que são necessárias mais mulheres aguerridas?

Em Espanha há uma grande mobilização em que as mulheres se intitulam feministas, inclusive as raparigas. Em Portugal, agora parece que é démodé falar sobre feminismo e direitos das mulheres.

No fundo, o que é que o feminismo pretende? A igualdade entre homens e mulheres. “Ah elas agora querem ser homens?” Não, nós não queremos ser homens. Queremos igualdade de direitos. E a igualdade de direitos não é só boa para as mulheres, também é boa para os homens.

Áreas ligadas ao cuidado das pessoas mais velhas, das crianças, à alimentação da família, têm de ser partilhadas com as mulheres, assim como os cargos de poder.

Na escola ninguém me falou de feminismo. Foi já adulta que soube quem foi Beatriz Ângelo. No programa da escola nunca me falaram das “Novas cartas portuguesas” de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Não sabia que o livro tinha sido proibido e que elas tinham sido perseguidas. Mas também nunca tinha ouvido falar de Maria Lamas e “As Mulheres do meu país”, de como ela percorreu Portugal para conhecer a condição das mulheres.

Há uma ocultação do que é a História das mulheres e acima de tudo uma falta de consciência de que nunca ninguém nos deu nada de mão beijada. Todos os direitos que temos, foram conquistados pela luta das mulheres ao longo dos séculos.

Uma omissão social

Enquanto cofundadora de uma associação de mulheres, com uma atividade muito dedicada à erradicação da mutilação genital feminina, tem os apoios necessários?

Em Portugal não há apoios para as associações de mulheres, não conheço nenhuma que tenha fundos para pagar salários a tempo inteiro. As mulheres são ativistas porque têm de ser, caso contrário ninguém vai assumir as suas causas.

Quando deixei a área de gestão para me dedicar ao projeto das Mulheres Sem Fronteiras passei vários anos sem receber nada. Primeiro precisei criar projeto, mostrar trabalho e só depois é que começaram a surgir as oportunidades de financiamento e, mesmo assim, apenas para uma parte das despesas da associação.

Na área da sensibilização sobre a mutilação genital feminina está a ser a feito um trabalho extraordinário, que não era possível sem as mulheres das comunidades onde essa problemática existe. Elas são ativistas no terreno diariamente, são mediadoras, conselheiras, psicólogas e em troca de pouco ou nada.

“Quantas vezes abriste a boca para dizer “ontem assassinaram uma mulher. Nós, homens, temos que acabar com isto?!”

De acordo com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género em 2023 registaram-se 22 homicídios voluntários em contexto de violência doméstica, 17 das vítimas eram mulheres, duas crianças e três homens. As mulheres são as principais vítimas dos crimes violentos porque existe impunidade?

Continuamos a ser as vítimas porque o sistema patriarcal o permite.

Quando crimes graves acontecem, eu digo aos homens do meu círculo “estes tipos que matam as mulheres são os teus amigos, são os teus colegas de trabalho”. A reação: “não digas isso porque eu não tenho amigos assim”. Então questiono “quantas vezes, na hora de almoço, quando estás com os teus amigos, ou colegas de trabalho, abriste a boca para dizer “ontem, no meu bairro, assassinaram uma mulher, nós, homens, temos que acabar com isto?!”. Então respondem “achas que vamos falar disso?”. Pois, “é como se isso para ti fosse indiferente”.

Acho que os homens deviam estar muito preocupados em educar as novas gerações sobre o que é ser homem, sobre o respeito para com as mulheres, sobre o direito sexual das mulheres e contra a violação, contra a violência doméstica.

Há aqui qualquer coisa de muito grave, quando numa sociedade, e no mundo, se tolera que homens abusem de forma continuada de meninos e meninas, de outros homens e mulheres, sem que haja condenação e respostas suficientes para tratar o trauma dos sobreviventes.

Alexandra Luís defende que as mulheres e os homens portugueses precisam ser mais conscientes e ativos sobre o feminismo

Mas, a sociedade identifica um crime sexual e um crime de violência doméstica com o devido peso?

A sociedade toda devia envolver-se e dizer “não vamos permitir que isto aconteça”, é uma omissão o que temos. A participação cívica em Portugal está muito aquém do que seria desejado.

As pessoas vão na rua, veem uma rapariga ser assediada por homens e fingem que não estão a perceber. E como os homens, quando vão na rua acompanhados de mulheres, não veem isso acontecer, pensam que esses problemas não existem.

Futuro sem “falsa ilusão”

Num futuro em que cuidar será uma profissão remunerada, quem a assumirá?

Nós temos preocupações no quotidiano que não fazem parte do universo dos homens, pelo menos de forma prática e sentida. E quando queremos levar essas questões para o espaço público, as pessoas dizem: “são mesmo coisas de mulheres”. É verdade, são mesmo coisas de mulheres, mas os homens podem interessar-se por elas.

Depois temos o inverso, os homens que assumem responsabilidades de forma igual, que respeitam a carreira das companheiras. Mas, estes homens, quando precisam de ajuda no seu dia-adia para resolver uma questão com os filhos na escola, para um conselho sobre alimentação, são marginalizados por quem questiona: “onde está a tua mulher? Isso são coisas dela”.

Estamos presos a pepéis. Não tenho dúvida que se os desconstruíssemos agora, muitos homens e mulheres abraçariam a profissão de cuidador da família. E escolheriam essa profissão não porque não há emprego para todos e alguém vai ter que ficar em casa, como os populismos agora apregoam, mas, por vocação.

Como concretizar o plano traçado em 1909 quando se celebraram, pela primeira vez, os direitos da mulher?

Há uma falsa ilusão de que tudo está conquistado. Cada vez que falamos com pessoas que não estão no movimento das mulheres, com amigos ou amigas, a primeira coisa que falam é “eu vi uma reportagem sobre as mulheres no Afeganistão, as meninas lás não vão à escola”. Então, mas vamos falar de Portugal, o que é que nos falta fazer aqui também? E temos logo a resposta, “aqui o que é que vocês querem mais?”.

Percebemos que é uma luta que ninguém quer comprar. Não é algo que esteja na moda e as pessoas pensam “lá vêm elas, é uma chatice”. De repente, os direitos das mulheres, a desigualdade, tornaram-se um não tema.

Seria impossível e irreal dizer que nada foi feito em Portugal. É óbvio que sim, então quando celebramos os 50 anos do 25 de abril revisitamos muitas coisas que mudaram. A questão é que, mesmo do ponto de vista legislativo e de políticas públicas, as coisas estão no papel, mas, têm também que estar no quotidiano das mulheres.


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