Victor Ângelo

Dedicou a sua vida ao trabalho humanitário. Victor Ângelo foi Alto Funcionário das Nações Unidas para Operações de Paz e para o Fundo para a População por mais de 30 anos, teve a oportunidade de trabalhar em países como São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola, Guiné- Equatorial, República Centro-Africana e Gâmbia, entre outros. O seu universo são as questões globais ligadas ao desenvolvimento, à resolução de conflitos e defesa da paz. Em entrevista à AMI Notícias falou-nos da sua jornada profissional e como presencia a humanidade dos dias de hoje.  

Quando e como é que começa este percurso na área do desenvolvimento e do trabalho humanitário?  

Comecei a trabalhar para as Nações Unidas, mais exatamente com o Fundo para as Atividades da População (FNUAP), em 1978. Era, na altura, um jovem quadro técnico do Gabinete de Estudos do Instituto Nacional de Estatística, depois de ter estado na direção do INE entre Maio de 1974 e Setembro de 1976 bem como na primeira Comissão Nacional de Eleições, formada após o 25 de abril.  

Fui recrutado por decisão do secretariado da sede da ONU, que tinha avaliado as minhas capacidades ao observar o meu trabalho junto da OCDE, onde representava o INE num projeto comum de formulação de indicadores sociais. Fui enviado para São Tomé e Príncipe, como técnico da direção de estatísticas do novo país. Nessa altura, as estatísticas de São Tomé eram um serviço nascente, para o qual Cuba havia destacado um Comissário político, para acompanhar o diretor, que vinha dos tempos coloniais e não tinha nem a confiança política das novas autoridades são-tomenses, nem a preparação técnica suficiente para dirigir o serviço.  

Passados dois anos e meio em São Tomé, e vencida esta primeira prova, o FNUAP encarregou-me de abrir um escritório regional em Maputo, que além de Moçambique tinha a responsabilidade da supervisão dos projetos em Angola, na Guiné Equatorial e também em São Tomé. A ida para Maputo confirmou a minha integração na carreira das Nações Unidas. 

No tema das crises esquecidas, e tendo em conta a sua vasta experiência, em cenários de instabilidade e insegurança, quais é que classifica como sendo as maiores e mais negligenciadas crises humanitárias da atualidade?  

A maior crise humanitária atual é a do Afeganistão. Cerca de 60% da população precisa de ajuda, quer alimentar quer nas outras áreas do campo humanitário: saúde, educação, proteção dos direitos das pessoas mais frágeis e marginalizadas. Segue-se a Etiópia, com uma crise profunda, escondida pelas autoridades centrais, mas que atinge cerca de 26 milhões de pessoas. O que se passa na região do Tigray é particularmente grave e o acesso humanitário é impedido pelo governo federal, liderado por Abiy Ahmed, que foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 2019 e que é atualmente um chefe de guerra, que não reconhece os princípios humanitários internacionais. A terceira grande crise, em números absolutos, vive-se no Iémen. Em termos relativos, o Iémen ocuparia infelizmente a primeira posição: quase 70% dos seus habitantes carecem de apoio humanitário absoluto e urgente.  

A Nigéria, o Sudão do Sul, a República Democrática do Congo, Myanmar, Bangladesh, a Somália, a Síria e o Sudão também fazem parte da lista de países com gravíssimas situações de carência absoluta, de deslocamentos forçados de populações e níveis elevados de insegurança e de violação dos direitos fundamentais das pessoas. E agora, aqui à nossa porta, temos a enorme crise humanitária ucraniana.

Segundo dados do ACNUR, 82.4 milhões de pessoas encontram-se deslocadas forçadamente, 6.6 milhões estão refugiadas, um vasto número destas pessoas vive em campos de acolhimento há anos… Algumas nasceram e cresceram nestes lugares que são criados com o intuito de receber as pessoas temporariamente e em situação de emergência. Quais são as causas desta falta de respostas que deixam a vida das pessoas em suspenso?  

As guerras civis, os conflitos armados, a falta de respeito pelos direitos humanos, a corrupção das elites governantes, o terrorismo e as perseguições étnicas estão na base da desestabilização da vida de milhões de pessoas. Muitas dessas populações acabam por procurar refúgio noutros países, geralmente em países limítrofes, engrossando assim o número de refugiados que hoje existem no mundo. Na realidade, no total inventariado pelo ACNUR faltam aqueles que não conseguem que o seu estatuto de refugiado seja reconhecido, acabando por ser os mais vulneráveis dos vulneráveis. Só no Paquistão, para dar um exemplo, existem mais de 300 mil afegãos, que fugiram do seu país após a chegada dos Talibãs ao poder, e que não conseguem obter nem o estatuto de refugiados, nem, por isso, a proteção do ACNUR. 

Como é que se mitigam as consequências de um conflito armado ou desastre natural do ponto de vista humano? É possível garantir, através de um trabalho concertado entre as Nações Unidas, organizações governamentais e não governamentais, que as populações afetadas se restabelecem efetivamente dos danos causados nas suas vidas?  

A coordenação entre as agências das Nações Unidas, as instituições nacionais e as organizações não-governamentais é essencial para que se possa dar uma resposta tão completa quanto possível aos desafios humanitários. Sempre defendi que as Nações Unidas se devem focar sobretudo nas tarefas de mobilização de recursos, de coordenação e segurança, deixando os aspetos operacionais e o trabalho de terreno ao cuidado das organizações não-governamentais bem como dos serviços nacionais de apoio humanitário. 

Como é que a pandemia veio agravar estas crises humanitárias, particularmente em países como por exemplo o Iémen, a Síria, a Somália, o Uganda ou o Bangladesh, onde o número de pessoas refugiadas ou internamente deslocadas é exorbitante?  

A Covid-19 agravou substancialmente as crises humanitárias. Também dificultou a operacionalização das respostas, devido aos constrangimentos em termos de deslocações, à fragilidade dos sistemas de saúde e à falta de meios para combater a expansão da pandemia. O acesso às vacinas mostrou as desigualdades existentes entre os países mais ricos e os outros, como também revelou que os refugiados e os deslocados se encontravam no fim da fila, no que diz respeito às vacinas. Em 2022, a expansão das campanhas vacinais nos países mais pobres e junto das populações mais carenciadas deve ser uma prioridade absoluta, na área do combate à Covid. O apoio deve passar pela OMS e pelas outras agências da ONU, em colaboração com os governos nacionais e as organizações não governamentais ativas no domínio da saúde pública. 

 O Instituto para a Economia e Paz diz-nos que os efeitos das alterações climáticas se agravam exponencialmente de dia para dia, o que significa que em 2050 se preveja que 1.2 mil milhões de pessoas poderão ficar deslocadas. São números alarmantes, como é que antevê este cenário? 

As alterações climáticas são um dos grandes desafios dos nossos tempos. Cada país deve elaborar cenários que procurem antecipar e encontrar respostas aos impactos negativos das alterações climáticas. Nos países menos desenvolvidos, esse impacto levará a um agravamento da pobreza, a deslocações em massa e à ocupação descontrolada de espaços suburbanos, com tudo o que isso significa em termos de saneamento, de saúde pública, de desordenamento urbano, de desemprego e modos de vida informais, e de desafios para a ordem pública. Haverá ainda que contar com uma aceleração dos fluxos migratórios internacionais e com novos focos de tensão e conflito. 

 Quais é que considera serem as grandes problemáticas que impedem, por parte da comunidade internacional e das Nações Unidas, a resolução efetiva de crises humanitárias de longa duração? 

Os dramas humanitários têm na origem profundas crises políticas. E a maioria dessas crises correspondem a conflitos que duram há anos, mesmo décadas, e que não têm sido resolvidos. É aquilo a que chamamos conflitos congelados ou esquecidos. Na realidade, são conflitos que passaram a fazer parte da cena política internacional, ou seja, que entraram na rotina das relações internacionais, na inaceitável normalidade de um mundo injusto e desigual. Permanecem insolúveis porque o Conselho de Segurança das Nações Unidas está dividido. Infelizmente, as fraturas no Conselho de Segurança continuam a agravar-se. Por isso, é impossível ser-se otimista no que diz respeito à redução dos níveis de sofrimento em massa de certas populações. Isso significa que as organizações humanitárias são e serão indispensáveis para aliviar esse sofrimento e salvar vidas. Aqui é importante sublinhar que as considerações políticas não devem, de modo algum, impedir o trabalho das agências humanitárias. 

O que é que nós, enquanto sociedade civil, podemos fazer, na prática, para apoiar e participar ativamente na resolução destes conflitos e impedir o esquecimento em torno destas crises?  

Sempre fui um defensor empenhado das organizações da sociedade civil. Desempenham funções da maior importância na chamada de atenção para as situações de vida ou de morte, para a salvaguarda da ordem humanitária internacional, e para a prestação de serviços de assistência às populações vítimas de violência, de abusos de poder, de radicalismos, xenofobismo, e de todo o tipo de agressões à dignidade humana. É necessário amplificar os alertas e os apelos que a sociedade civil lança. É igualmente da maior importância reconhecer a dedicação e a militância das organizações não governamentais. A agenda pública fica mais pobre quando as associações de cidadãos e de voluntários são sistematicamente ignoradas ou mesmo atacadas, como acontece em países com regimes ditatoriais. A democracia e a paz ficam a ganhar quando existe uma sociedade civil corajosa e dinâmica. Organizações como a AMI fortalecem o tecido social e ajudam-nos a lembrar o valor da solidariedade e da esperança. 


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