Um lugar para chamar meu

A histórias de vida de José Albino, Marta, Prince Tito e Mateus cruzam-se com a história do Centro Porta Amiga das Olaias. Aliás, ali encontraram respostas quando quase tudo falhou nos lugares onde antes procuraram ajuda e compreensão.

Texto :Ana Martins Ventura
Fotografia: José Ferreira

Abrem-se portas. Quem chega traz no “bom-dia” a familiaridade de anos. No Centro Porta Amiga das Olaias (CPA) (ligar para https://ami.org.pt/missao/centro-porta-amiga-olaias/ ) muitas histórias vão e voltam, na impossibilidade de encontrar outras soluções. Em 29 anos de portas abertas no coração do bairro “Portugal Novo”, mais de 20.000 pessoas encontraram no CPA Olaias apoio para momentos difíceis das suas vidas.

Um banho quente e uma muda de roupa para amenizar a aspereza da rua. Almoço sentado à mesa. Uma conversa para curar a solidão. Entregam-se cabazes alimentares. Há decisões a tomar sobre documentos que os beneficiários não têm e precisam, acompanhamento para consultas médicas. Apagam-se luzes, fecham-se portas. Amanhã tudo se repete.

A rotina do CPA das Olaias é movimento contínuo na vida de José Albino. Naquela casa com 29 anos, instalada no centro do bairro “Portugal Novo”, o ex-militar encontrou o afeto e cuidado que procurou desde a infância e “um lugar para chamar meu”. Marta encontrou ali o apoio psicológico que precisava para “não desistir e continuar a tentar reunir a família”, depois de ter perdido a casa. Prince Tito espera, com a ajuda da equipa de intervenção social, conseguir renovar o documento que comprovará a sua identidade. Mateus vem pela refeição e banho quente, por uma muda de roupa. Pequenas coisas que valem muito nos seus dias.

Sem família, até enlouquecer

A maior parte dos casos acompanhados pelo CPA das Olaias seriam evitáveis se as pessoas tivessem uma rede familiar.

A assistente social Flávia Ricardo acredita que José Albino “nunca teria passado a vida entre quartos alugados e a rua se a sua saúde mental tivesse sido devidamente acompanhada e a família estivesse presente”.

Hoje, representa um dos oito beneficiários a receber apoio psicológico regular no CPA das Olaias. No dia-a-dia, o serviço chega a muitos mais beneficiários, entre pedidos regulares e extraordinários, de janeiro a outubro foram realizados 121 acompanhamentos pelo serviço de psicologia.

José Albino chega de manhã ao CPA, toma o seu banho, recebe uma muda de roupa que escolhe com esmero porque sempre gostou de ter “bom ar”. Enquanto espera pelo almoço a que se seguirá uma consulta, puxa do cigarro e começa a contar: “Tenho 54 anos, estou farto da rua e dos hospitais. Perdi o quarto alugado e estou, novamente, na rua. Só depois de uma vida de surtos é que fui diagnosticado com Borderline”.

O ex-militar tinha doze anos quando a mãe o colocou “fora de casa”, porque “era muito agressivo. Quando essas crises aconteciam “o companheiro da minha mãe fechava-me numa arrecadação e dava-me a comida na tigela do cão. A vida era difícil. Vivíamos numa barraca no Lumiar”, conta José Albino.
Procurou ajuda na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa onde entregou a irmã, também colocada na rua pelos pais, e dali foi encaminhado para “uma instituição de rapazes, onde ficaria a morar e aprenderia o ofício de sapateiro”. Aos dezoito anos com “ordem de saída” sentiu-se “livre e, ao mesmo tempo, perdido na rua”. Começou a “roubar e traficar droga para comer, ter roupa e sapatos”.

José Albino nunca teria passado a vida entre quartos alugados e a rua se a sua saúde mental tivesse sido cuidada desde a infância. Fotografia: José Ferreira/AMI

Depois de reencontrar um irmão, José Albino ainda dividiu casa com ele, mas “contrariado”. Não queria ver o irmão a obrigar a namorada a prostituir-se. Quando foi chamado para cumprir o serviço militar, pensou “nunca mais voltar”.

Na recruta prestou provas para “ganhar uma boina verde” e assim ingressou na Força Aérea, colocado na Base das Lajes, nos Açores.

A dureza do treino militar assemelhou-se a “uma tortura”. Afirma ter sido “treinado para matar” e foi durante esses treinos que entrou em surto psicótico. Quis disparar contra um oficial e foi enviado para o Hospital Júlio de Matos onde o diagnosticaram com “um esgotamento”.

Após a alta, José Albino fugiu para Espanha, onde perpetrou crimes de roubo e tráfico de droga, cumprindo penas em cinco estabelecimentos prisionais, de Sevilha, Barcelona e Madrid, até regressar a Portugal. Cada vez que cruza a porta do Centro Porta Amigas das Olaias, José Albino renova a esperança de ter uma casa e vai perguntando, “é agora que é a minha vez?”.

“De repente, fiquei sem casa”

Marta representa o novo perfil das pessoas que desde 2022 começaram a recorrer a apoio alimentar. Não estão na rua, mas, por pouco. A especulação do mercado imobiliário mudou as suas vidas. Se antes conseguiam pagar contas e manter uma casa, hoje precisam de apoio para não chegarem ao ponto de passar fome. A partir do CPA das Olaias, 348 pessoas recebem apoio alimentar através de cabazes, o que representa 113 agregados familiares.

“Há muitas pessoas a morrer, na sombra, de fome e desprezo”

Marta, beneficiária do CPA Olaias

Vítima da crise no mercado do arrendamento imobiliário em Portugal, onde “ninguém controla os astronómicos arrendamentos”, Marta ficou sem casa em dezembro de 2022. O proprietário do apartamento que arrendava disse que “não renovaria o contrato porque precisava habitar a casa”. Mas, logo a seguir, o apartamento foi entregue a quem estava disposto a pagar o dobro. “E foi assim que, de repente, fiquei sem casa”, lamenta. “Teria ficado na rua, não fosse a solidariedade da mulher para quem trabalho hoje”.

Pagou os 300,00 euros da renda de casa “sempre, sem falhar”. Mais do que isso era impossível.
Ser prestadora de cuidados é o único trabalho que Marta consegue manter. A saúde deteriorou-se por causa de décadas de esforços nas limpezas, onde fazia turnos duplos, das 6h00 às 18h00, para não ganhar apenas 500,00 euros.

Quando ficou sem casa, a sua nova empregadora disse que a podia hospedar, assim como ao neto. Outras netas ficaram em casa de uma amiga e a filha teve que dormir na rua.

“O medo de ficar na rua de um momento para o outro é grande”, afinal a pessoa para quem Marta trabalha pode, a qualquer momento, suspender o vínculo.

Para “não ser um peso para os outros” Marta pediu apoio alimentar, que recebe a partir do Centro Porta Amiga das Olaias. Também recebe pouco mais de 180,00 euros de Rendimento Social de Inserção e o abono do neto. Está à espera da reforma, mas aos 60 anos ainda deve esperar, para não ser muito penalizada. O seu trabalho de hoje é feito a troco de alojamento.

Viver assim “é o fim, uma situação que nunca tinha considerado possível”, porque sempre trabalhou. Na sua vida, as palavras “direitos humanos” são apenas isso, palavras. Há muito tempo que não pensa naquilo a que tem direito e nunca conseguiu alcançar. Os netos, a filha, o medo, ocupam todos os pensamentos do dia. Portugal não está em guerra, não se disparam tiros, mas “há muitas pessoas a morrer, na sombra, de fome e desprezo”.

Novos pedidos de ajuda, todos os dias

De janeiro a outubro de 2023, o Centro Porta Amiga das Olaias acompanhou 1.607 pessoas.
No refeitório do CPA das Olaias são servidas, diariamente, refeições para 158 pessoas, o que representa 7.482 refeições de janeiro a outubro de 2023.

O serviço de roupeiro, de janeiro a outubro, foi requerido para 484 pessoas, número que representa 224 agregados. E os balneários são utilizados regularmente por 94 pessoas.

Nas ruas de Lisboa, mais tendas e outros abrigos improvisados surgem a cada semana, nos ângulos cegos das ruas, onde quem passa parece indiferente à nova paisagem urbana.

Se em 2021 os Censos contabilizaram 241 pessoas em situação sem-abrigo na Grande Lisboa, em 2022, mesmo com o fim da pandemia e alguma recuperação económica, o número não diminuiu.

Ao número de pessoas que ficaram a viver na rua durante a pandemia, acrescem agora novos casos, gerados pela especulação imobiliária e pelo aumento exponencial do custo de vida.

Uma população à qual a AMI dedica diariamente grande parte da sua atuação, enfrentando os desafios do número crescente de casos, sem desistir do alerta social para que sejam tomadas mais medidas e de forma mais assertiva.

“Estamos perante uma população em situação sem-abrigo que há muito tempo comporta diferentes grupos da sociedade, mostrando-nos que esta problemática pode, a todo o momento, acontecer na vida de qualquer pessoa”, afirma Flávia Ricardo, assistente social da Equipa de Rua da AMI, em Lisboa.
De janeiro a outubro, a Equipa de Rua da AMI de Lisboa acompanhou 223 casos, a quem realizou 862 atendimentos e encaminhamentos. Destes, 215 representam apoio à habitação.

Prince habituou-se a ficar na sombra desde que partiu da Libéria para trabalhar em Portugal. Recorda como “as coisas correram mal, correram especialmente mal, durante a pandemia”, até que, sem trabalho, sem dinheiro, restou outra vez a rua. Depois o álcool. “É assim que ficamos”, descreve Prince, “anestesiados, para não pensarmos na família que não voltámos a ver, no julgamento ou descaso das pessoas que passam por nós na rua”.

Sem dinheiro, sem acesso ao trabalho “não somos cidadãos, não temos como contribuir para a sociedade e somos deixados à margem”.


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