A viagem do ‘Príncipe’

A viagem do Príncipe

Numa corrida contra o tempo, Prince Tito precisa renovar o passaporte para um dia, talvez, regressar à Libéria. Por agora, o documento é a chave para não se tornar invisível em Portugal

Texto: Ana Martins Ventura
Fotografia: José Ferreira

“Agora, o meu país sou só eu! Não há muito que pensar, onde ir. E, na verdade, como iria?”. Prince Tito perdeu tudo quando acabou o trabalho prometido por quem o trouxe da Libéria para Portugal. Com o passaporte caducado, mesmo que um dia queira, não poderá regressar, e em Portugal tornar-se-á invisível. O Consulado da Libéria sugere que Prince renove o documento em França. Uma viagem impossível.

Talvez termine em Lisboa, a viagem do ‘Príncipe’, que surpreende os companheiros de rua pelo nome e pela história. De casa ficarão apenas “memórias que se apagam” e talvez seja melhor.

Na mais antiga república africana, “a vida também nem sempre era boa”. Vinte anos de guerra civil deixaram cicatrizes para outros vinte. “Não havia trabalho, nem comida”. Tal como Prince, uma geração inteira de príncipes e princesas, apenas no nome, formaram um exército de crianças-soldado que serviram os reis da guerra e foram abandonadas nas ruas de Monróvia.

Carpinteiro de profissão, Prince chegou a Portugal em 2009, para trabalhar na construção civil. “Trabalho pesado e pouco dinheiro lembrava a Libéria”. Só que, mesmo curto, o salário de pouco mais de 600,00 euros dava para alugar um quarto e até enviar algum dinheiro à família.

Teve o primeiro contacto com o Centro Porta Amiga das Olaias há mais de uma década. Em 2022, começou a ser acompanhado em proximidade pela Equipa de Rua da AMI.

“Prince não tem condições para ir a França renovar o passaporte e nem o poderia fazer desacompanhado”

Flávia Ricardo, assistente social da AMI

A covid-19 fez parar os “biscates” que ainda fazia na construção civil. Sem contrato e ilegal no país, esperou. Esperou e não voltou a ser chamado para o trabalho. Em pouco tempo, “sem dinheiro, a rua foi a única solução”. Quis procurar ajuda, mas, “por estar ilegal, não conseguia apoios”.

Prince “via o tempo passar” pelas ruas de Lisboa, quando umas pessoas chegaram e começaram a falar com o seu amigo Mateus. Era a Equipa de Rua da AMI. Mateus contou a história do ‘Príncipe’ que veio da Libéria e não tinha para onde ir. Trocaram as primeiras palavras em inglês e pela primeira vez em meses caiu a barreira linguística que deixava Prince isolado.

Com a Equipa de Rua da AMI, Prince iniciou um processo junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para tentar a legalização. Enquanto o processo não fica concluído, a morada do Centro Porta Amiga das Olaias é a referência de Prince para ter acesso ao Rendimento Social de Inserção.

Na longa viagem de Prince falta a conquista que o levará até uma nova casa, talvez até a recuperar o trabalho. “Se não deixar o consumo de álcool não conseguirá aceder a uma vaga num abrigo. É uma das condições”, explica Flávia Ricardo, assistente social que integra a Equipa de Rua da AMI em Lisboa. Mas, mesmo sem consumir, não poderá avançar no plano de vida sem renovar o passaporte.

Igualdade perante a lei

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece nos artigos 7.º e 15.º que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei” e “todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade”. Parecem premissas inegáveis, mas estão longe da concretização para cerca de 10 mil imigrantes em situação irregular em Portugal sem possibilidade de regressar ao país de origem, seja devido a asilo ou questões financeiras.

O passaporte, único documento de identificação que restou a Prince, está caducado e “o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] não responde, não é possível fazer uma marcação”, explica Flávia Ricardo.
Em contacto com o Consulado da Libéria, a assistente social que acompanha o caso de Prince, foi informada pelo cônsul António Ferreira Carvalho que “é preciso ir a França, à embaixada mais próxima, para fazer o passaporte”.

Sem dinheiro e apenas sabendo algumas frases em inglês, a assistente social tem a certeza, “Prince não tem condições para ir a França renovar o passaporte e nem o poderia fazer desacompanhado”.

Em alternativa, a Equipa de Rua da AMI espera conseguir junto do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) um Passaporte para Cidadãos Estrangeiros. Mas, para obter esse documento, o IRN exige que seja apresentado um título de residência. Documento que Prince perdeu, apenas tem uma cópia. Gerando um problema, outro, “para pedir um título de residência original, é preciso um passaporte válido”.

Nos últimos meses, Beatriz Ferreir, psicóloga da Equipa de Rua da AMI, tem encontrado Prince de “semblante ainda mais carregado”. O fim da validade do passaporte “dificultará tudo ao Prince e deixará sem ação as equipas de intervenção social que o acompanharem”. Para Beatriz Ferreira tem sido “muito difícil ver uma pessoa ainda jovem a degradar-se de semana para semana, sem que nada mais possa ser feito”, pelo menos no momento.

Perder o documento de identificação significa perder a continuidade do processo no SEF, o registo na Segurança Social e no Serviço Nacional de Saúde. Em pouco tempo, será como se Prince não existisse em Portugal.

Entre 2020 e 2022, centenas de imigrantes ficaram em situação sem-abrigo na cidade de Lisboa devido a questões ligadas direta e indiretamente à pandemia. “Novos sem-abrigo”, assim foram chamados na época. Um ano e meio depois da pandemia ser dada como controlada em Portugal, estes imigrantes ainda não recuperaram casa ou trabalho e não conseguem regressar aos países de origem.


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