“A Líbia é mais que uma terra, é algo que vive no meu coração”

A professora e investigadora académica, Iman Bugaighis acredita que a maior revolução que um país pode viver é através da Educação. Quis concretizar esse sonho na Líbia mas a perseguição política fez dela e da sua filha refugiadas. A partir de Portugal continua a olhar para os diferentes pontos do mundo onde os direitos humanos são derrotados pela guerra e não desiste da Líbia.

Texto: Ana Martins Ventura/AMI
Fotografia: José Ferreira/AMI

Para Iman Bugaighis, ser líbia é ser além-fronteiras, viver com o país onde se nasceu no coração enquanto a casa é o mundo. Há quase dez anos deixou a Líbia, depois da sua irmã, Salwa Bughaighis, ser assassinada à queima-roupa, em casa.

Salwa Bugaighis foi assessora do Conselho Nacional de Transição da Líbia e vice-presidente da Comissão Nacional de Diálogo, mas havia decidido deixar as instituições em protesto por não terem sido nomeadas mulheres para o novo governo. A advogada também se opôs à proposta do governo que pretendia impor o uso obrigatório do hijab, quando, na Líbia, sempre foi uma escolha pessoal.

Ao lado de Salwa, Iman participou na Revolução de 2011 e na fundação do Conselho Nacional de Transição da Líbia que governou o país durante e após a revolta, tornando-se porta-voz da nova instituição. Alguns meses após a queda do regime de Kadhafi, Iman também decidiu deixar o Conselho e regressar à universidade onde dava aulas, acreditando que “a maior revolução seria feita a partir da Educação”.

Quando Salwa foi assassinada, Iman percebeu que toda a família envolvida na Revolução de 2011 não estava mais ao lado do Governo. Temendo pela vida rumou à Jordânia, dando início a uma longa viagem que a teria Portugal como destino. A Líbia nunca deixou de estar presente na sua vida. Sonha regressar e “lutar pelos direitos e democracia que continuam a ser negados aos líbios”.

Como vive a pertença a um país ao qual pode nunca mais conseguir regressar?

Vim para Portugal em 2016 com a minha filha, depois da minha irmã ser assassinada. Nós falámos, lutámos com palavras, em nome dos direitos humanos que nos estavam a ser negados, por liberdade, justiça, por uma constituição, depois do Governo abolir a que tínhamos.

Acreditámos na causa, tal como continuo a acreditar hoje. Perdi uma parte da minha família em nome da liberdade e acredito que, um dia, ainda verei a Líbia liberta de tudo o que está a passar.

Durante quarenta anos a vida foi muito difícil para nós. Kadhafi destruiu todas as organizações. Nós revoltámo-nos por bens essenciais e claro que ele não aceitou isso, até à morte.

Depois da morte de Kadhafi, durante um ano e meio entrámos num tempo amigável, tudo parecia estar a mudar e a caminhar para a paz.

Era uma ilusão. O novo Governo tinha medo da força da revolução e perseguiu os apoiantes. Foi o caos.
Quando saí da Líbia, fixei-me na Jordânia. Como tinha a minha filha comigo pensei que era a melhor opção porque ali ficava com visto de residência, devido à ligação política que existe entre os dois países.
Nessa altura, a embaixadora Ana Gomes falou-me de Portugal e decidi vir para cá, porque percebi que regressar à Líbia não era possível.

A professora Iman Bugaighis encontrou em Portugal a segurança para sobreviver à perseguição do Governo na Líbia

A um continente de distância da Líbia há outras lutas a travar?

Fiz uma pós-graduação numa universidade do Reino Unido e uma especialização na Hungria, ambas reconhecidas em Portugal. E depois de um processo de avaliação, a minha licenciatura feita na Líbia também teve equivalência em Portugal. Então, fui convidada para dar aulas na universidade, mas não foi uma viagem fácil.

Em Portugal a comunidade Líbia é pequena, conheço cinco a seis famílias. Não é um país fácil para os imigrantes, mas estou muito grata e penso sempre que a minha irmã, Salwa, não teve a mesma oportunidade.

Mesmo tendo chegado a Portugal com o coração pesado, não queria deixar o meu país. Ainda quero voltar para ajudar, o meu lugar é lá. Apenas ainda não é o tempo certo para regressar. As revoluções levam tempo, levam décadas.

Quando percebeu que seria a voz da revolução e, mais tarde, do Conselho Nacional de Transição da Líbia?

A revolução foi espontânea. Kadhafi tinha destruído as organizações e o exército, então todo o movimento revolucionário avançou muito rápido. Nós percebemos que éramos responsáveis por aquela revolução e quem podia fazer algo, fez, assumiu a frente.

O primeiro levante foi em frente ao porto [de Bengasi]. A maioria das pessoas que lá estavam eram advogados, juízes e professores que se conheciam e queriam formar uma associação [que viria a ser o Conselho Nacional de Transição da Líbia], sem qualquer experiência anterior a fazer algo similar.
Como eu falo inglês, o papel de porta-voz da revolução surgiu de forma natural.

Depois de serem oprimidas por mais de 40 anos, as pessoas estavam famintas por poder. Mas, para mim, a Educação continuava a ser a chave para resolver tudo. Regressei à universidade, onde dava aulas, e tentei implementar algumas mudanças. Não foi fácil porque, após décadas de opressão, toda a gente queria a sua liberdade. O tempo era de mudança, mas sem restrições e sem diretrizes. Então veio o caos.

“Depois de serem oprimidas por mais de 40 anos as pessoas estavam famintas por poder. Mas, para mim, a Educação continuava a ser a chave para resolver tudo”

Viver sob o silêncio

Quando começaram as fações dentro do Conselho Nacional de Transição da Líbia os planos da Revolução de 2011 caíram por terra. O direito à educação e informação ficou comprometido, assim como o acesso igualitário a bens essenciais. O Governo diz que a segurança é a prioridade e continua a apoiar o armamento de milícias. Sem investimento na saúde e educação, a ajuda humanitária da comunidade internacional é urgente.

Que país é a Líbia hoje?

As coisas estão a ficar muito más outra vez. O nível de corrupção é elevado. Temos dois Governos, um a Oeste e outro a Este. Não sabemos quantas pessoas morreram nas cheias, quantos feridos, eles [o Governo] não dão essa informação. O que as pessoas de Derna dizem é que é possível que 30 mil pessoas tenham perdido a vida. Mas o Governo parou a contagem nas 4 mil mortes. É como se essas pessoas nunca tivessem existido, isso ceifa a dignidade humana.

Agora há uma grande competição sobre quem ficará encarregue da reconstrução de Derna. O nível de destruição é grande e há famílias a viver na rua e a ajuda humanitária não chega. Na Líbia não estávamos habituados a isso. Havia pobreza, luta por direitos humanos, mas todas as pessoas tinham casa.

Hoje, a Líbia tem 7 milhões de habitantes, é o quarto maior país de África, com muito minério e apesar de todos estes recursos, as pessoas estão a sofrer. Os salários são pagos com dois ou três meses de atraso. O Governo só autoriza o levantamento de 300 a 400 dólares das contas bancárias particulares. Ninguém confia nos bancos, as pessoas que tinham depósitos não vão voltar a ter acesso ao seu dinheiro. Para levantar ou transferir pequenas quantias para o estrangeiro, dentro dos valores autorizados, é preciso fazer um pedido e aguardar em lista de espera, por dois a três anos.

Em muitos lugares da Líbia, na zona Este do país, há uma grande opressão. Ninguém pode falar nas redes sociais, na rua ou no trabalho, porque alguém vai aparecer e levá-las ou matá-las ali mesmo onde estão, tal como fizeram à minha irmã.

O exército foi destruído, mas o antigo regime tinha o hábito de colecionar armas. No tempo da revolução temia-se que as portas dos armazéns fossem abertas e o povo se armasse para uma guerra civil. E as portas foram abertas e vimos as pessoas levarem mísseis antiaéreos para as suas casas e montarem-nos nos telhados, outras levaram tanques. Kalashnikov, toda a gente tem uma em casa. Não há Estado de Direito.

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(Legenda: Ansiosa por defender os direitos humanos e a democracia pelos quais lutou, Iman afirma que as Nações Unidas precisam agir)

Porque a ajuda humanitária não chega?

Na Líbia a corrupção tornou-se uma cultura. Ninguém é punido. Já era assim antes da revolução e manteve-se depois. Ver isso é muito duro porque nós temos recursos, então questionamos: qual é o futuro que nos espera?

Em vez de ser investido em Educação e Saúde, o dinheiro vai para outras coisas. O Governo foi fazendo algumas obras, aqui e ali, mas quando se tira a limpo, o panorama geral está muito longe do que é necessário construir. E ninguém pode falar.

Passou pelos mais de 40 anos do regime de Kadhafi, viu a guerra civil começar em 2014. Como esperava que os direitos dos líbios tivessem sido defendidos pela Organização das Nações Unidas?

A Itália apoiou o Oeste da Líbia. A França apoiou o Este e o Egipto também, porque queria estender as suas fronteiras em parte da Líbia. No Este do país, as milícias convidaram ainda a Rússia para as apoiar e agora têm bases e estenderam a sua ação ao sul do país.

No Sul, a partir das fronteiras com o Níger, Chade e Sudão, a pressão da imigração ilegal foi e continua a ser elevada. A Europa sabe perfeitamente o que está a acontecer, que não há direitos humanos para os imigrantes ilegais. Não há direitos para nós, líbios, como pode haver para quem vem de outro país completamente desprotegido?

É grande o interesse no território da Líbia, mais significativo que o interesse em defender e garantir direitos humanos. Correm boatos sobre dinheiro que vem de diferentes pontos da Europa para as milícias comprarem armas. Em troca elas devem ajudar a travar a imigração ilegal.

As milícias dizem que se armaram para combater o antigo regime, mas depois não quiseram entregar as armas. Só existe caos na Líbia por causa dessa força que as milícias foram ganhando, e ninguém faz nada para o impedir.

É tudo uma questão de poder. Lentamente, as pessoas do antigo regime começaram a fazer contactos com quem estava no poder e regressaram ao Governo.

Esta falta de ação de que fala, estende-se a outros pontos do mundo?

Os direitos humanos da Declaração Universal são para quem tem cidadania.

Vemos o que se passa entre África e França, na forma como os imigrantes ilegais são tratados. O que está a acontecer na Ucrânia há quase dois anos. Depois, os ataques na Palestina e em Israel onde mais uma vez são os civis que sofrem as consequências. Vemos tudo isto passar impune, sem uma ação firme e percebemos que garantir direitos humanos continua a ser um problema sem fim à vista.

A cultura europeia e a cultura além do Ocidente

Líbia, Egito, Palestina, Israel, Síria, Iraque, Irão, Afeganistão, Paquistão, Coreia do Norte, Rússia, Ucrânia, Turquia. O círculo de conflitos que se interligam pelas alianças que cada um destes países mantém exige muito aos recursos das Nações Unidas.

As Nações Unidas não conseguem garantir a defesa de direitos humanos dentro da Europa quando mais fora dessas fronteiras.

A Líbia teve uma má experiência com as decisões vindas da Europa. Quando a NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte] criou uma zona de exclusão, próximo a Bengasi, os bombardeamentos intensificaram-se e muitos civis morreram. O que nos ficou dessa ação é que o Catar e os Emirados Árabes Unidos ficaram autorizados a intervir dentro de território líbio, para ajudar a NATO.

Acreditando na diplomacia internacional, as Nações Unidas, a NATO, consideram que estão a criar as melhores alianças, mas, muitas vezes, só estão a deixar um país que está em guerra e devastado ainda mais vulnerável.

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos criou alicerces para a Humanidade, mas não tem em conta diferenças culturais entre povos”

Que posicionamento tem a Europa na defesa dos direitos humanos?

É permissiva. Olhamos para o Direito Penal Internacional e o que vemos? Só palavras e depois silêncio.
Acontece algo em plena Europa, Vladimir Putin invade um país, mata civis e ninguém faz nada definitivo para impedir. Incentiva-se que os países enviem, de forma independente, apoio militar para a Ucrânia. Recebem-se refugiados e nada mais, durante anos.

Bush também instalou o exército americano em vários países, arrasou o Iraque. As Nações Unidas não fizeram nada. Até hoje ficam em silêncio sobre o assunto.

Olhamos para a Palestina a situação é a mais desesperante. Em Gaza não há abrigos, não há comida. Uma criança disse “eu quero morrer para ir para o céu” e quando perguntaram porquê, ela disse “porque eu quero pão e no céu há pão”. Quando isto pergunto: isto são direitos humanos a serem defendidos? O silêncio também é uma forma de alimentar o imperialismo.

Quando diferentes culturas não encontram entendimento e causam milhares de mortes de civis, não é necessário que outros países intervenham com apoio militar?

Tudo é apontado como culpa de conflitos culturais ou religiosos. Isso não é verdade. Na Líbia sempre tivemos boas relações com a comunidade judaica.

O problema foi quando a Europa decidiu recuperar uma zona de influência no Médio Oriente, que tinha perdido há centenas de anos. Deram terra a um povo e depois disseram, se tiverem problemas defendam-na. Isto é imperialismo e colonização.

Ninguém fala sobre o facto de a Polónia incentivar a compra de vistos na Palestina. Há muitos judeus da Polónia a comprar vistos e a empurrar os palestinianos para fora das cidades, para campos de refugiados.
Imaginem que alguém vai às vossas casas e depois de lá estar diz que as vai tomar. A seguir, mata as vossas crianças e vocês têm que ficar pacíficos, “portar-se bem”.

No mundo de hoje, a Declaração Universal dos Direitos Humanos concretiza o propósito para o qual foi criada?

Há uma grande diferença entre a ratificação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a sua implementação.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos criou alicerces para a Humanidade, mas não tem em conta diferenças culturais entre povos. Implementa um modo de vida ocidental que não funciona em todos os lugares do mundo.

Quando estas ideias ocidentais são impostas ou implementadas em países com uma grande diferença cultural, causam grande instabilidade.

A Declaração foi feita sem consultar países fora da esfera ocidental. E a partir daí, até hoje, tem sido usada não só como a cartilha que o Mundo deve seguir, mas como uma arma para apontar e atacar.

É quase como um show de civilização, o que a Declaração promove. Se és civilizado pertences ao grupo, se não és, ficas à margem da diplomacia mundial.


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