A faixa do mundo que perdeu o direito à vida e liberdade

Um ativista na Cisjordânia, uma professora portuguesa e uma médica libanesa têm em comum a luta por direitos humanos que lhes são negados. Descrevem o mundo de hoje como passivo, ditando apenas palavras perante o assassinato de milhares de pessoas, pelas armas, fome e doença. Nunca a aplicação efetiva da Declaração Universal dos Direitos Humanos esteve tão em risco, como no momento em que celebra 75 anos de ratificação pela Organização das Nações Unidas.

Fotografia: Anas Mohammed

Mughannam Ghannam esperava há uma semana, na Cisjordânia, informações do coordenador da ONG Juhoud for Community and Rural Development Palestine – Juhoud em Gaza, para planear a intervenção no terreno, quando a ajuda humanitária fosse autorizada a entrar. No tom aflitivo de quem está de mãos atadas perante os ataques a um território onde 2,5 milhões de civis estavam retidos, Mughannam Ghannam não sabia se o colega estava vivo. Não havia dúvidas, o mundo já estava a assistir a “um genocídio da Humanidade na Palestina, contra o qual a Organização das Nações Unidas não estava a ter uma atitude assertiva”.

A partir de informação reunida pelas ONG, devido à guerra e à fome, o ativista da Juhoud sabia que “na Faixa de Gaza, cinco pessoas morriam a cada cinco minutos”.

Os ataques do Hamas e de Israel destruíam o princípio de fraternidade entre as nações e os povos, o direito à vida e à liberdade. Artigos 1.º e 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), definidos com o objetivo de nunca mais se repetir o mesmo flagelo da II Guerra Mundial.

Passado mais de um mês desde o início do conflito, na Faixa de Gaza ninguém está a salvo e muitas ONG, como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO não conseguem garantir a ação e segurança das suas equipas.

“Escolas, casas, hospitais, mesquitas e também igrejas, locais de refúgio, têm sido alvo de ataques e mais de 9.000 civis perderam a vida, incluindo crianças e idosos”, garante Hamad Alwahab, coordenador da Juhoud na Faixa de Gaza.

Na Faixa de Gaza “46% das habitações estão completamente ou parcialmente destruídas, combustível, água potável e comida estão a acabar, com a população a racionar comida e água, com menos de três litros por dia por pessoa”.

Devido à escassez de água e de material médico para dar assistência à população, “as doenças e o sofrimento estão a aumentar”, não apenas na Faixa de Gaza, mas, também, na Cisjordânia.

A capacidade de assistência médica diminuiu drasticamente e “é urgente o acesso a kits (atenção a este itálico e outros) de higiene, para que se consiga conter a propagação de doenças e diminuir a pressão sobre os hospitais”. Material que nem mesmo o principal fornecedor da Cisjordânia tem disponível. E, apesar de estarem a ser enviados suprimentos para hospitais, as colunas com ajuda humanitária são constantemente atacadas.

Hamas e Israel colocaram de parte as regras para a salvaguarda de civis durante uma guerra “. Na Faixa de Gaza o 3.º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos – “todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” – já era há anos quase uma utopia. Desde 7 de outubro, tornou-se impossível defender.

“As Nações Unidas disponibilizam abrigos e campos de refugiados, mas nenhum local é seguro, zonas civis e de grande densidade são constantemente atacadas”, revela Hamad Alwahab e, à data de fecho desta edição, encontravam-se deslocadas mais de 1,4 milhões de pessoas.

Com o cerco de Israel à Faixa, sair da região para outro ponto da Palestina é igualmente impossível sendo eliminado o “direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado” e o direito a “deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a esse regressar”, do 13.º artigo da DUDH.

De olhos postos na ‘Passagem de Rafah’ milhares de palestinianos esperam chegar ao Egito através da única fronteira onde ainda é possível tentar uma fuga do inferno, mas, ciclicamente, o governo egípcio abre a fronteira apenas alguns dias para depois a voltar a fechar.

Impossibilitados de viver no seu país, para os palestinianos, sair significa sobreviver e, ao mesmo tempo, uma perda irreparável. Mughannam Ghannam acompanha desde 7 de outubro a resistência da população, “os palestinianos não querem partir, sabem que se o fizerem será quase impossível regressar, pois o território será ocupado”.

Direitos humanos ou apenas palavras?

Iman Bugaighis sonha com a liberdade da Líbia.
Fotografia: José Ferreira/AMI

À distância, depois de ter fugido da Líbia onde tentou “mudar o destino das coisas” através da Revolução de 2011, a médica e ativista Iman Bugaighis lamenta o “avanço impune da violência e repressão em Gaza”. Tal como viu acontecer na Líbia, durante o regime de Muammar Gaddafi – Kadhafi – e após a queda do ditador.

Nessa época “a comunidade internacional gerou mais violência do que ajudou a proteger os civis”, acusa Iman Bugaighis. Hoje, “a Organização das Nações Unidas continua a falhar, passiva perante o que está a ser feito na Faixa de Gaza a 2,5 milhões de pessoas, pouco a pouco eliminadas, desde a sua vida à sua marca histórica e cultural. Porquê?”.

Iman Bugaighis sonhou a vida toda com educação, saúde e democracia para a Líbia, para o Mundo. Viu ser-lhe cortado o direito a ter um país, incluído na Declaração Universal que diz alimentar “mais palavras do que ações”.

Para Iman a bússola da Declaração Universal dos Direitos Humanos está perdida. “A partir do momento em que ditadores como Putin matam milhares de civis e viajam pelo mundo, sem serem detidos, é como se disséssemos que qualquer governante pode matar pessoas e reclamar a terra e direitos que quiser”, afirma. Com este grau de impunidade, “não admira que um certo colonialismo avance a passos largos sob a Palestina”, valendo o poder sobre a terra, mais do que a vida de civis.

Um plano falhado?

Sem eletricidade e medicação para anestesia, a assistência nos hospitais é quase impossível.
Fotografia: Marwan Hamouu/ Shutterstock

A professora Silvana Pereira cresceu entre conversas “em surdina” da mãe e do pai, feitas de “eram palavras fortes contra a guerra, o silêncio, a tortura, num tempo em que ter ideias e opinião era perigoso”.

Quando a guerra chegou a terras, então portuguesas, Silvana já era mulher feita e entrava no Movimento Estudantil consciente do que significava “o silêncio”. Disposta a defender os ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, recorda que, apesar dele, do silêncio, “ter vinte anos em Portugal, em 1961, não era o mesmo que ter vinte anos hoje: entre a comunidade estudantil havia uma consciência muito profunda sobre política e sobre os direitos que era urgente reivindicar”. O sonho dos direitos humanos era “vivido intensamente e acreditávamos que íamos realmente mudar o nosso mundo”.

Em 1978, Portugal ratificou a Convenção Europeia dos Direitos Humanos aceitando dessa forma defender os pressupostos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Passados 45 anos “liberdade e direito à individualidade” são para Silvana Pereira conquistas inegáveis. “Por fazer? Há muito. Temos famílias a dormir na rua. A comida, mais simples que possa existir, uma sopa, uma fatia de pão, não é uma realidade para todos. Há pessoas sujeitas a trabalho escravo, completamente desprotegidas e à margem de qualquer defesa pela lei”, contesta Silvana Pereira.

Quando em 1974 a mensagem da revolução portuguesa soou pela manhã de 25 de abril, Silvana pensou “é agora que Portugal vai entrar para o círculo daqueles que defendem acima dos ideais políticos, os direitos humanos”. Demorou mais quatro anos. Finalmente em 1978, Portugal ratificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Garantia-se que ninguém mais teria fome, frio, que haveria trabalho para todos, democracia” e assim seria “se os interesses económicos não se tivessem sobreposto aos direitos das pessoas”. Para Silvana “o plano falhou, completamente”.

As armas vs a comida

Passados 75 anos, ratificada por 183 países e traduzida em 525 idiomas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ratificada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, por si só, nas mãos de alguém, ainda não garante a defesa do direito à vida e dignidade, à nacionalidade, ao livre culto religioso, à habitação e trabalho.

Será a paz, causa fundadora da Organização das Nações Unidas e ideal eterno da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sempre e somente isso: um ideal sem concretização?

“Estamos perante uma grande falha na atuação dos líderes em todo o mundo, nunca os direitos humanos [da Declaração Universal] estiveram em risco como agora”

Deprose Muchena, Amnistia Internacional

Cinco dias antes do Hamas e Israel declararem guerra, durante a 2ª Conferência internacional da Plataforma de Direitos Humanos, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, sob um profundo silêncio da plateia, Deprose Muchena afirmou: “estamos perante uma grande falha na atuação dos líderes em todo o mundo, nunca os direitos humanos [da Declaração Universal] estiveram em risco como agora”.

O diretor da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral não tem dúvidas, as guerras estão a causar uma militarização mundial. Relegando o acesso a bens essenciais para segundo plano, “em muitos países, é privilegiado o investimento no fabrico de armas e não na produção de alimentos”.

Ao mesmo tempo, a Organização das Nações Unidas anunciou que: nos países da União Europeia, pelo menos 5% das pessoas não têm os seus direitos humanos defendidos, a guerra na Ucrânia despoletou, até ao momento, a maior crise de direitos humanos na Europa do século XXI.

As consequências da guerra na Ucrânia vão ainda muito além da Europa. Os consecutivos embargos à comercialização de cereais deixam muitos países de África, que dependem dos cereais da Ucrânia, em risco de uma grande fome. E o apoio da Rússia a células rebeldes em África, que representam fações em diferentes guerras civis, está a causar instabilidade entre países.

“A partir do Sudão, o impacto da guerra feita por 120 grupo armados, está a causar instabilidade em todos os países da região, sendo o caso mais grave a República Democrática do Congo”, garante Muchena,

Eduardo Pinto da Silva, Chefe da Divisão de Direitos Humanos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, concorda que “a especulação causada pela guerra é, atualmente, um dos maiores ataques à garantia dos direitos humanos na União Europeia e nos países com os quais mantém negócios e relação diplomática”. Muitos bens alimentares tiveram um aumento de 100%, as casas também, o acesso a cuidados médicos está cada vez mais longe de ser igualitário.

O chefe da Divisão de Direitos Humanos do Ministério dos Negócios Estrangeiros defende veementemente a “criação de mais missões de solidariedade” e Deprose Muchena subscreve que “a velocidade é fundamental na resposta à defesa dos direitos humanos”, seja no oriente ou no ocidente da Europa. Afinal, em Portugal a crise de direitos humanos também é grave: “há casos de tortura em prisões; tráfico e exploração de pessoas na agricultura e pesca, sem esquecer o bloqueio no acesso à habitação, motivo que leva centenas de pessoas a viver nas ruas”.


De onde vêm e até onde chegaram a “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”?

1772 a.C.

Código de Hamurâbi é criado na Mesopotâmia para defender o direito à Justiça, punir os difamadores, proteger a família e condenar a violência sexual.

539 a.C.

O Cilindro de Ciro, uma declaração do rei persa Ciro II defendia a liberdade religiosa e a abolição da escravatura.

400 a.C.

Na Roma antiga havia o conceito jurídico da concessão da cidadania a todos os romanos, como direito base para aceder a outro conjunto de direitos.

I d.C.

O Cristianismo afirmou a igualdade de todos os homens sob a mesma dignidade.

200 d.C

Filósofos cristãos desenvolvem a Teoria do Direito Natural. O ser humano está no centro de uma ordem social e jurídica justa, mas a lei divina tem prevalência.

1215

Magna Carta é assinada pelo rei João de Inglaterra.

1776

Declaração de Independência dos Estados Unidos da América defende: “todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”.

1789

Revolução francesa sob os ideais Liberté, Égalité, Fraternité (Liberdade, Igualdade, Fraternidade).

1863

Início da abolição da escravatura nos Estados Confederados da América do Norte.

1935

Leis de Nuremberga retiram às comunidades judaicas da Europa o direito à cidadania, educação, trabalho e habitação. Durante uma década, em 20 países, milhões de pessoas são assassinadas.

1948

Ratificação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas.

1978

Portugal ratifica a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

1981

A Organização da Unidade Africana proclama a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, apenas ratificada em 1986.

1990

A Declaração Cairo, para a defesa de direitos humanos, é firmada pela Organização para a Cooperação Islâmica.

1993

Declaração de Bangkok para a defesa dos direitos humanos é emitida na Ásia.

1996

Estados africanos que ratificam a Declaração de Tunes defendem: não pode existir um modelo universal de direitos humanos porque desvincularia realidades históricas e culturais de cada nação e povo.


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