Horizonte cortado

Nunca foram meninas a tempo inteiro e descomplicado. Cresceram logo mulheres, de corpo batizado a heroína. Chegaram à prisão sem viverem os seus direitos plenamente, presas à violência, trabalho escravo, tráfico. Atrás dos muros continuam em segunda fila. Desde as celas maiores, ao acesso à biblioteca e até na missa, a primazia é dos homens. Não há medidas iguais e as oportunidades são raras. 

Texto Ana Martins Ventura | Fotografia José Ferreira 

Ema entrança o cabelo, desenha o contorno dos olhos e escreve. Carla pensa sobre a liberdade. Recupera o corpo da droga. Não há espaço onde pousar o olhar e sentar o silêncio na cela de dois metros quadrados partilhada com duas camas, um armário, uma sanita e um lavatório. Quando a porta fecha “só há direito a confinamento e pensar, pensar nos erros até enlouquecer”. De manhã ressurge um horizonte cortado a betão, construído para homens. É dia da formação da AMI “Sensibilizar para Melhor Reintegrar – Cidadania em Ação”. Durante noventa minutos, uma vez por mês, regressam à escola. Momento raro que temem nunca concretizar. 

O Estabelecimento Prisional do Funchal (EP Funchal) não é abrangido por protocolos de formação profissional, seja de âmbito nacional, a partir do Instituto de Emprego e Formação Profissional, ou de âmbito regional, através do Instituto de Emprego da Madeira. “A formação que chega aos 310 homens e oito mulheres é feita pela boa vontade da comunidade”, assegura Armando Coutinho, diretor adjunto do EP Funchal. O acesso ao ensino secundário e superior é garantido, mas desigual. Entre os homens, apenas oito frequentam o ensino secundário e um frequenta o ensino superior. 

As mulheres têm de percorrer um longo caminho de autorizações, para alcançar livros e computadores, o que as impede de estudar e mudar o seu futuro. 

De saída dos corredores e minúsculas celas da ala feminina do EP Funchal, Ema chegou ali depois de “um acerto de contas”. Em 2020, estava desempregada e envolveu-se em “negócios de droga” para manter as suas despesas. Depois veio o consumo. 

Um antigo patrão devia-lhe dinheiro e “não queria pagar a bem”, então Ema decidiu forçar. Na noite da cobrança o grupo de amigos que a acompanhou queria mais dinheiro e “como o banco estava fechado o homem ficou retido no carro até de manhã”. Lamenta “não ter a noção do quanto era grave o que estava a fazer”. 

Traz num caderno poemas, contos e pensamentos prontos a publicar. “Renascer das Cinzas”, assim nomeia o lugar só seu, onde reinam as palavras “mulher”, “livre”, “dor”, “recomeço”. 

O início do tempo na prisão foi difícil, “achava que era uma vítima e o mundo estava todo contra”, até admitir: “deixei essas pessoas entrarem na minha vida, tive culpa do que aconteceu”. 

Conhecer o mundo atual, debater ideias, resolver problemas e derrubar obstáculos são as prioridades do momento para preparar. Ema quer seguir em frente e “nunca mais voltar à prisão”. Lá fora tem dois filhos e o medo de “cometer os mesmos erros, de não conseguir publicar o livro” escrito em longas noites. 

Carla saiu de S. Miguel, nos Açores, com “uma proposta de trabalho [na Madeira] que afinal não era tão certa como pensava”. A oportunidade surgiu através de uma amiga. “Disse que precisavam de uma pessoa para trabalhar num bar, só que era uma ‘casa de mulheres’” e só percebeu quando foi apresentada à gerente e esta disse para “mostrar o corpo”. Perguntou “para trabalhar no bar é preciso ver o meu corpo?”. Com a resposta soube que o trabalho era para “fazer atendimentos ao copo”. Alterne. 

Carla cedeu, precisava de dinheiro para o bloom. Presa a uma droga altamente aditiva não pensou que estava a ser vítima de tráfico sexual, habituou-se à “rotina do bar” e ficou dois meses. Fugiu, farta da exploração, se fizesse 500,00 euros numa noite em copos, 250,00 euros ficavam para a casa. E recorda: “vivi nas ruas, prostituí-me, roubei. Fui obrigada a fazer coisas que na minha ilha não fazia. 

Carla teme que, fora da prisão, a falta de formação a empurre para trabalho mal remunerado e daí o tráfico e consumo

Só depois de ser presa despertei para a dimensão do que tinha acontecido”. Já não queria saber da droga por a ter levado à prisão e a revolta ficou maior quando recebeu a notícia da morte da mãe. Ela também consumia bloom e quando morreu estava completamente desidratada. 

Se não chegasse ao Estabelecimento Prisional do Funchal Carla acredita que também acabaria morta porque “não dormia, o bloom mantém as pessoas despertas e quanto mais se tem, mais se quer”. Na prisão passou “dias e dias a dormir, acordava apenas para comer”. Entre muros curou-se e casou. Faz parte da leva de detenções feitas para limpar o bloom das ruas do Funchal quando a violência, associada ao consumo desta droga, disparou e ameaçou madeirenses e turistas. 

Vive de uma incomum gratidão pela condenação. Nem por isso deixa de olhar para o fosso de direitos entre homens e mulheres na prisão. Quer regressar aos Açores com o marido, condenado pelos mesmos crimes, em coautoria. “O risco de voltar a consumir está tanto na Madeira, como nos Açores”. Para se afastar da droga o trabalho é a solução. “Mas como ter um trabalho melhor e mudar a vida se a formação para as mulheres na prisão é tão limitada?”. 

O tempo de confinamento e apatia é superior ao tempo dedicado à reinserção. As bibliotecas ficam nas alas masculinas. Também só desse lado há oficinas de artesanato, mecânica, serralharia, assim como uma panificadora, a cozinha e a enfermaria. 

Se Ema e Carla quiserem estudar ou fazer formação, além da formação dada pela AMI, “o acesso a livros e computadores é muito limitado, depende de uma requisição total da biblioteca e da disponibilidade para escolta a uma ala masculina”. Resta a área das limpezas para fazer formação. Quando tentam lutar por direitos iguais “a solução é uma transferência para Tires e ficar longe da família”. 

Armando Coutinho, reconhece que “as condições não são as ideais, nem mais equitativas entre géneros, mas esta prisão também não foi construída na sua origem para ter ala feminina”. 

O aumento do número de reclusos condenados por crimes sexuais e homicídios obrigou a readaptações que retiraram espaço às mulheres e deram mais corredores aos homens. Ainda assim, o diretor adjunto não descarta que, “tudo está a ficar mais humanizado no sistema prisional, já não há carcereiros, há guardiões de chaves que conhecem todas as vicissitudes das vidas destas mulheres até chegarem aqui”. 

O Curso Básico de Socorrismo da AMI chegou ao EP Funchal para responder à vontade de humanizar aquele sistema prisional. Primeiro sempre para os homens, depois para as mulheres. 

Helena Andrade, Delegada da AMI na Madeira, recorda “um homem, no grupo dos primeiros formandos, que ficou emocionado porque aquele foi o primeiro diploma que teve na vida”. 

Durante noventa minutos, uma tarde por mês, oito mulheres reaprendem direito e cidadania

A partir desse primeiro momento, Helena entendeu que podia fazer no EP Funchal uma abordagem a temas de cidadania, atualidade e direitos humanos. Iniciou-se a formação “Cidadania em Ação” para um grupo de doze reclusas, num espaço onde nem verde se vê e “cidadania e direitos humanos são debates raros”. 

Mulheres a dar formação a mulheres partilham vivências e percebem que as suas histórias não são assim tão diferentes. Helena Andrade reconhece que “90 minutos de formação por mês é pouco, mas representa uma oportunidade extraordinária num lugar onde quase nada se fazia pelas mulheres”. 

Com idades entre os 18 e os 60 anos, em muitos casos uma escolaridade que não ultrapassa o 4.º ano, as reclusas têm percursos marcados pela violência e “o consumo de droga está presente em quase todos os casos”. 

Alice deixou a escola aos 14 anos, com o 8.º ano concluído, para trabalhar. A morte da mãe obrigou à autonomização precoce. “Trabalhando aqui e ali” encontrou “uma anestesia e um refúgio na droga”. Anulou a sua identidade e pensou ter “poucos direitos” para servir sempre outros. Esqueceu a paixão pelo futebol que começou a praticar no Clube de Futebol Andorinha, o mesmo onde Cristiano Ronaldo começou a carreira, depois terminou no Marítimo. Na prisão ainda treina com o guarda Rodrigues. Quando sair, “talvez consiga voltar ao Marítimo”. 

Condenada por roubo e tráfico junto com o homem que é seu companheiro há dezassete anos, “quando a porta da cela fecha ao fim da tarde o pensamento é dos erros e dos filhos, sozinhos”. Angústia constante. 

Não olha ninguém nos olhos, “por vergonha ou falta de autoestima”, pondera Helena Andrade. Com a autoestima perdida, debater cidadania e direitos humanos na aula mensal da AMI é a oportunidade de Alice construir a sua personalidade. “O resto dos dias é dedicado às limpezas”, o único trabalho a que pode aspirar na prisão. 

“A liberdade não é uma experiência fácil, muitas vezes, a estrutura familiar está completamente quebrada e o isolamento pode ser muito duro”

Helena Andrade, Delegada da AMI na Madeira 

Durante as aulas, as mulheres interligam o debate sobre direitos humanos com as suas próprias histórias e percebem que “merecem oportunidades e dignidade, melhorar as suas vidas a partir da prisão e isso nem sempre é possível”. 

Os limites são muitos, mas desistir não é uma opção e Helena Andrade insiste, afinal “a liberdade não é uma experiência fácil, muitas vezes, a estrutura familiar está completamente quebrada e o isolamento pode ser muito duro”. Pior ainda é o estatuto que elas atribuem a si mesmas, pensando sobre o que fizeram ou não fizeram com as suas escolhas. 

Já em liberdade chega o dia de Ema concluir o Curso Básico de Socorrismo da AMI. Saiu há um mês do EP Funchal e não deixou de trazer para cima e para baixo o caderno de poemas e pensamentos que vai transformar em livro. A ideia não é, nem nunca foi, passageira. 

Por agora, a prioridade é conseguir trabalho. A baixa escolaridade não ajuda. Viver numa ilha onde todas as histórias se conhecem também não. Eliminar preconceitos e estereótipos só dentro de algumas gerações. 

Para Helena Andrade a solução será sempre “intervir o mais cedo possível, trabalhando com as famílias e apoios que não criem dependência, mas, validem a autoestima e autoconfiança”. Tudo está ligado à infância. Um percurso em que “nós, Estado Social, temos falhado”. 

O índice de saída precoce do ensino é muito alto, “ainda há muito abandono escolar ligado à precariedade e existe grande desigualdade social, o que leva as pessoas a procurar elevação social por caminho menos legais”. A percentagem de reincidência na prisão é elevada, mas há provas de que a formação e uma relação de respeito mútuo entre profissionais e reclusos começa a dar resultados. 

Guardar chaves e histórias

Já não é raro conhecer os reclusos pelo nome, um por um. Os guardas prisionais, o diretor adjunto, são as pessoas a quem estes homens e mulheres recorrem em primeiro lugar, nos piores e melhores momentos. É com eles que falam ao abrir e fechar das portas. “Conversas que constroem confiança, geram conselhos”, conta Rodrigues, guarda no EP do Funchal. 

Milhares de quilómetros percorridos em rondas, mapa decorado ao detalhe, Rodrigues passa pelos corredores ao ritmo de “um guardião de chaves e de histórias”, como se assume. Doseia disciplina e compassividade. 

Quem está preso faz parte da sua vida e torna-se inevitável conhecer o nome e a história. “João como é que isso está hoje? Fernando, está quase na hora de almoço!”. Em cada familiaridade está “menos violência, menos peso nos dias infindáveis”. 

“Guardião de chaves”, Rodrigues procura conhecer cada nome e história dos homens e mulheres do EP Funchal

A prisão não é só o lugar onde estão violadores, pedófilos e homicidas que ninguém quer ter por perto, “lá dentro há muitas histórias de injustiça social, de homens e mulheres marginalizados desde a infância”. 

Rodrigues recorda quando teve de contar a um recluso que a sua mãe estava a morrer. Uma pessoa violenta a quem todos temiam a reação. Ao guarda, o homem pediu apenas a oportunidade de se despedir da mãe. 

Rodrigues encaminhou o pedido, foi aceite e transformou-se em gratidão. 

O diretor adjunto do Estabelecimento Prisional do Funchal tem a certeza que “é inevitável caminhar para a humanização do sistema prisional, durante e após a pena, caso contrário não estamos a reconstruir as pessoas, porque é disto que se trata, de vidas. E não são apenas as vidas dos reclusos, das famílias também. Caso contrário para que servirá o tempo de reclusão? Apenas para punir? Para isso, voltava-se à pena de morte dos tempos medievais”. 

O progressismo impulsionado por Armando Coutinho começou com um pormenor: “chamar os reclusos pelo nome”, depois vieram as histórias pessoais, conhecidas uma por uma. 

Tráfico porta sim, porta sim

“Grande parte da criminalidade está relacionada com tráfico de droga”, afirma Armando Coutinho, diretor adjunto do Estabelecimento Prisional do Funchal. E é impossível não interligar o percurso de um recluso com o percurso da sua família que, muitas, vezes, continua em risco.

Filomena paga um preço alto por anos de tráfico de droga em família. Sobreviveu aos murros esquizofrénicos do marido, que acabavam com a polícia à porta. Depois de 23 anos de casamento, quando sair da prisão José “não pode regressar a casa”. Os filhos são prioritários, “o estrago na saúde mental deles é demasiado alto para repetir tudo”.  

Seria fácil seguir o mesmo caminho, “o que mais há na Madeira é tráfico em família, porta sim, porta sim”. Decidiu apostar no trabalho para cortar o ciclo que começou num negócio gerido pela sogra. 

ilomena não queria que libertassem o marido sem nada, depois de dez anos preso, “quem consume droga precisa de um plano de vida”

Criou os três filhos sozinha, entre idas e vindas do marido da prisão, a mais recente depois de conduzir em contra-mão para fugir à polícia. O gatilho que precisava para “não aceitar mais um companheiro que nunca chegou a partilhar verdadeiramente uma vida em família”. Ao contrário do que imaginava na assistência social surgiram os maiores obstáculos à emancipação. 

Filomena começou a trabalhar por turnos “porque o ordenado é melhor” mas, “disseram que devia demitir-se porque os filhos, embora fossem adolescentes, não podiam ficar sozinhos”. As soluções apresentadas foram “arranjar um trabalho com horário das 9h00 às 18h00 ou recorrer a apoios sociais”. Conseguiu trabalho num restaurante para o serviço de almoço. Mas o ordenado era curto para as despesas. Então deixou os conselhos impostos e conseguiu um part–time num supermercado. 

Dependente do marido e da sogra durante anos, depois de instituições, não entende “como viver de apoios pode emancipar?” devia ser “apenas uma ajuda de transição”. No Centro Porta Amiga do Funchal encontrou “outra compreensão”, ali começou a receber apoio psicológico, encaminhada pelo centro de saúde. 

Cristina Meneses, diretora do Centro Porta Amiga do Funchal, defende que “é preciso envolvimento com as pessoas e as particularidades das suas histórias, para adotar planos de vida únicos”. 

O tráfico e consumo de drogas é elevado na Madeira e quando se consegue cortar, “o segredo do sucesso é capacitar para autonomizar as pessoas de reincidências e da dependência extrema de apoios sociais”. 

Mesmo sendo doente oncológica Filomena não deixa de trabalhar dez horas por dia, “se for preciso”. Por ser “bem disposta”, todos acham que está bem. Sorri porque “a vida segue” e todos os dias os filhos precisam “comer e vestir”. 

As prisões de José sucedem-se por assumir o crime de tráfico no lugar da mãe. Já cumpriu 15 anos de penas e uma das vezes arrastou Filomena para uma pena suspensa. 

Aos 69 anos e contra todas as detenções do filho, a sogra de Filomena mantém o negócio de tráfico. Antes de José sair em liberdade condicional Filomena pediu à assistente social um plano de reinserção para o marido. “Não queria que jogassem o José na rua sem nada, depois de dez anos preso”, se isso acontecesse sabia que tudo voltaria ao mesmo, “quem consome droga precisa de um plano de vida muito restrito”. 

O segredo do sucesso é capacitar para autonomizar as pessoas de reincidências e da dependência extrema de apoios sociais

Cristina Meneses, diretora do Centro Porta Amiga do Funchal 

No início do novo tempo em liberdade José trazia algum dinheiro do trabalho feito para a Câmara Municipal do Funchal, no regime semiaberto, “por causa disso cortaram logo à família o rendimento mínimo [RSI]”. Quando o dinheiro acabou voltou ao tráfico e quatro meses depois da liberdade condicional José regressou à prisão.  

É quando tudo falha na saída que Armando Coutinho questiona se “o Estado e os atores sociais têm os recursos certos, para dar continuidade ao trabalho que é feito nas prisões”. Afinal, “por algum motivo ex-reclusos e ex-reclusas arriscam o mesmo crime”. 

Tudo para não regressar

Aos 14 anos teve o batismo de droga com heroína. Ficou logo preso. Aos 31 anos Pedro cumpre a segunda pena por tráfico, se puder nunca mais volta. Espera que lá fora a sociedade corresponda.

Nas ruas Pedro consumiu todas as drogas possíveis, a maior parte das vezes por gosto. Foi da Madeira para Inglaterra viciado em bloom mas, com alguma esperança de conseguir mudar de vida, a trabalhar. Acabou condenado a três anos de prisão por tráfico, de 2012 a 2015. De regresso a casa, em 2019, cometeu o mesmo crime. Quando pensa no passado “pela imaturidade repetia tudo”. Quando pensa na liberdade renova-se: “farei tudo para não regressar”. 

Pedro é um dos casos onde “uma quebra na rede familiar agravou os problemas com a droga e a partir do momento em que ele se afastou da sociedade, não houve uma estratégia que o repescasse para uma vida normativa”, comenta Armando Coutinho, diretor adjunto do Estabelecimento Prisional do Funchal. Talvez Cruz, outro recluso, seja um dos exemplos do que é possível fazer na vida de pessoas profundamente ligadas ao crime. 

Condenado com a esposa por tráfico internacional, Cruz encontrou no Curso Básico de Socorrismo “um meio para renovar as oportunidades de vida quando sair da prisão”. Antes de ser preso vivia entre a arte de barbeiro e o tráfico, em família. No EP Funchal continuou a fazer barba e cabelo. Espera “recuperar a profissão” e se tudo o que fez durante o cumprimento de pena o ajudar, reconquistará “orgulho e respeito” dos filhos e da mãe. 

Na prisão Pedro também fez mais do que fora dela. Começou pelo mesmo Curso Básico de Socorrismo e confrontou-se com “os riscos de vida corridos e vidas que poderia ter ajudado, como a de um amigo esfaqueado”. A formação da AMI representa uma parte do novo mundo, em que se sente “mais humano”, mais “capaz” e “valorizado”. A seguir, apostou no 12.º ano, em conclusão. 

“Pensava que a droga era uma questão pessoal com a qual ninguém tinha nada a ver”

Pedro

A morte do pai, em 2012, levou Pedro a afundar-se mais na droga. Quando a família estava completa “sentia respeito e ambição de querer que ficassem orgulhosos”. A seguir, veio “uma quebra total com a noção do certo e errado”, sem pensar que a droga afetava irmão, mãe e avó”. Pedro entendia que “a droga era uma questão pessoal com a qual ninguém tinha nada a ver”. 

Depois do desmame com metadona “parece que a mente limpou”. Para a liberdade leva o lema “um dia de cada vez”. Se dentro da prisão consegue “ter calma, paciência e dizer ‘hoje não’”, na rua também vai ser assim. 

Pedro sabe que a sua “maior cruz”, como lhe chama, é a droga e o facto de ser influenciável. Consciente do esforço contínuo em que viverá para combater um vício, Pedro não desiste de sonhar com casa, família e filhos. Sairá em liberdade com o 12.º ano e um emprego, numa empresa de construção civil. Gostava de trabalhar como barman, mas voltar a esse meio está fora de questão se quer quebrar ciclos. 

Uma arte para poucos

No vagar dos dias iguais Jorge criou um moinho, um castelo, carros. Cada vez que chega uma encomenda as ideias saltam os muros da prisão e a madeira ganha formas. 

A oficina de marcenaria, a de serralharia, mecânica, a padaria e a cozinha são caminhos possíveis para os homens do Estabelecimento Prisional do Funchal. Estão à mão dos corredores por onde podem caminhar. Para as mulheres estão inacessíveis. 

Nas oficinas há uma aura de normalidade, ou liberdade. Jorge está por lá há um ano. “Nunca tinha trabalhado com madeira”, um dia deram-lhe a oportunidade e “tudo veio de repente à cabeça”. 

Num lugar de “muitas rudezas”, o trabalho de Jorge é “muito precioso”, mas foi preciso que muitos o repetissem, pois “não acreditava que as esculturas em madeira valessem alguma coisa, quando sair da prisão gostava que continuassem a acreditar nesse valor”. 

Ainda que seja só um caso de sucesso, vale a pena agir

“Cumpre pena” desde 1998, ano em que ingressou profissionalmente no sistema prisional, enquanto psicólogo. Armando Coutinho considera-se como um recluso, pois partilham rotinas e acredita que essa é a fórmula para a humanização do sistema prisional. Em 2009, o trabalho no Estabelecimento Prisional do Funchal fascinou-o porque “a insularidade permite criar uma forte ligação entre a prisão e a comunidade”. A missão profissional ainda o levou a Santa Cruz do Bispo, mas, quando surgiu uma nova oportunidade, em 2016, regressou à Madeira.

Armando Coutinho, diretor adjunto do Estabelecimento Prisional do Funchal

O que há de diferente no EP Funchal?

A arquitetura é favorável a um bom cumprimento de pena. O alojamento é feito maioritariamente em cela individual, temos uma população dentro dos limites aceitáveis [cerca de 300 reclusos] e grande ligação com a comunidade envolvente na área da educação, desporto e associativismo, o que é fundamental. Reclusos e reclusas podem praticar desporto, há bibliotecas e mais de 17.000 livros disponíveis. Enganam-se as pessoas se pensam que os presos aqui ficam para sempre, um dia são devolvidos à sociedade e se saírem daqui com mais ferramentas académicas ou sociais é menos um problema para a freguesia ou comunidade a que regressam. 

E as oportunidades de capacitação resultam, de facto, em reinserção?

Não podemos olhar para a população reclusa como uma estatística. Ainda que seja só um caso de sucesso, vale a pena agir, porque é uma vida humana com a sua singularidade e idiossincrasia. Se um homem voltar à sua comunidade, por exemplo, e puder trabalhar como barbeiro, e reconstruir a vida ao lado da família, valeu a pena. O cumprimento de pena é um processo individual, não é coletivo. 

Existem recursos para começar a reinserção na prisão e acompanhá-la lá fora?  

Os recursos são sempre escassos. Faz-se muitas coisas por carolice. As parcerias surgem porque as pessoas que nos antecederam criaram uma aura de respeito e prestígio em torno do EP Funchal. A visita de estudo de uma escola pode ser um elemento de reinserção social. Aqueles jovens são atores de mudança para uma relação menos estigmatizante da sociedade para com quem esteve preso. 

Mudar mentalidades é um trabalho geracional. É por isso que nós, profissionais, entramos numa prisão jovens e só saímos de lá velhinhos, se nos deixarem. 

Um ex-recluso tem acesso a apoio psicológico?

A questão é: a sociedade tem investido na saúde mental para a comunidade em geral? À prisão vem parar a população mais doente de uma sociedade. Doente física e psicologicamente. Olhamos para reclusos de 30 anos que parecem ter 50. Tiveram estilos de vida que os desgastaram, a saúde mental nunca foi acarinhada e passaram por histórias de vida altamente nefastas. Na prisão, têm pela primeira vez acesso a uma consulta de psicologia ou a uma avaliação psiquiátrica. 

Dentro de um estabelecimento prisional há mais acesso a cuidados de saúde do que em liberdade?  

Diria que, por metro quadrado, num estabelecimento prisional, o cidadão comum, indiferenciado, com poucos recursos económicos, tem acesso a áreas de especialidade na saúde a que dificilmente teria acesso lá fora. Há mulheres que são acompanhadas pela primeira vez em ginecologia quando estão em cumprimento de pena. Têm acesso pela primeira vez a dentista, consultas de infecciologia, psicologia.  

Então? A comunidade andou distraída porque estas pessoas chegaram aos 30 anos e nunca foram vistas por estes profissionais. 

Mas este grupo populacional também esteve fora daquilo que é um seguimento habitual em saúde e educação. Em determinado momento, cortou a relação com a escola, iniciou-se no mundo do trabalho de forma não regularizada. Os cuidados de saúde deixaram de ser prioritários.

A sociedade investe em grupos como os reclusos para que os possa monitorizar e diminuir o alarme social. 

Quando os grupos vulneráveis não vão ao encontro das instituições, é obrigação da cidade ou da comunidade criar estratégias para cada um destes homens e mulheres. É preciso investir de base na educação, saúde mental, cultura, melhores salários, para que estas pessoas não escolham caminhos que as levem ao sistema prisional. 

Se a solução para quem está na prisão tivesse resultado instantâneo, estava em todos os programas governamentais. 


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