Entrevista à diretora executiva da Unicef Portugal sobre o trabalho infantil

Na sequência das Nações Unidas terem declarado 2021 como o ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil e uma vez que no mês de março a 80ª edição da revista AMI Notícias é dedicada a este tema, entrevistámos a Diretora Executiva da Unicef Portugal, Beatriz Imperatori. Considerando impreterível aprofundar este tema e as suas problemáticas agravadas pela pandemia da Covid-19, procurámos junto da Unicef encontrar respostas e possíveis soluções para erradicar este problema que afeta milhões de crianças em todo o mundo.  

 Quais são atualmente as principais preocupações e desafios da Unicef relativamente ao combate ao Trabalho e exploração infantil?  

 É importante começar por referir que o trabalho infantil é uma violação grave dos direitos da criança. Ao privar a criança de uma infância digna, com direito à educação, à saúde, o trabalho infantil causa um prejuízo, muitas vezes irreversível na saúde física, intelectual, no seu bem-estar emocional e psicológico, na sua capacidade de autonomia e de realização enquanto ser humano de plenos direitos.   

Neste momento, o grande desafio é o impacto da pandemia da COVID-19 na vida das crianças, concretamente no aumento do trabalho infantile, portanto, o desafio é identificar as áreas de intervenção que travem o aumento deste fenómeno. Assim, é crítico o combate à pobreza, em concreto à pobreza infantil, atuando de forma concertada nas suas várias dimensões: acesso à educação e saúde, nutrição, proteção, qualidade da habitação, entre outras. 

Como conseguir responder à situação existente, como conseguir travar que mais crianças deixem a sua casa, deixem a escola para trabalhar. Este é o desafio.  

As medidas diretas de resposta à pandemia tiveram um enorme impacto na forma de vida e de subsistência das famílias, a crise sanitária transformou-se numa crise económica e social, de direitos humanos e, em particular, dos direitos das crianças.  

A tendência positiva de diminuição deste fenómeno entre os anos 2000 e 2016, está comprometida. Nestes 16 anos registámos um decréscimo do número de crianças envolvidas em trabalho infantil na ordem dos 38%ou seja, cerca de 100 milhões de crianças foram retiradas destas atividades, continuando a ser uma realidade para cerca de 152 milhões criançasem que metade não só tem que trabalhar, mas tem que o fazer em condições de risco para a sua saúde e segurançaE é sempre entre os mais pobres que os números são mais graves, o rácio de 1 em cada 10 crianças passa para 1 em cada 4 crianças expostas ao trabalho infantil nos países mais pobres. 

A pandemia afetou milhões de pessoas e agregados familiares que, de um momento para o outro ou ficaram com pouco ou sem rendimento. Estas famílias, para sobreviver, viram-se obrigadas a pôr os seus filhos a trabalhar. Quando falamos de subsistência, ou de sobrevivência é difícil escolher.  

“O número de crianças que vivem atualmente em pobreza multidimensional – sem acesso a alojamento, educação, saúde, nutrição e água e saneamento – é avassalador: são 1.2 mil milhões.”

O número de crianças que vivem atualmente em pobreza multidimensional – sem acesso a alojamento, educação, saúde, nutrição e água e saneamento – é avassalador: são 1.2 mil milhões. Estima-se que este número possa ser agravado em mais 142 milhões de crianças em pobreza monetária.  

Ao empurrar cada vez mais crianças para a pobreza e, por consequência, para o trabalho infantil – esta pandemia veio pôr em causa os ganhos conquistados. Sendo a pobreza o mais significativo fator para o envolvimento de crianças em trabalho infantil, é preciso que os governos criem e implementem sistemas de proteção da criança e de proteção social, que protejam as crianças do trabalho e da exploração, que garantam que crescem e se desenvolvem de forma segura e plena.  

Que objetivos têm sido definidos na última década de modo a melhor identificar casos de exploração infantil e eliminar os riscos deste tipo de trabalho forçado na Europa e no mundo?  

O objetivo definido pelo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 8 – meta 8.7, é claro – erradicar o trabalho infantil em todas as suas formas até 2025, cinco anos antes do fim dos ODS. Este é um compromisso global, assumido pela comunidade internacional. 

Sob a alçada das Nações Unidas, e das agências stakeholders que trabalham ativamente para pôr fim a esta violação grave dos direitos humanos, têm sido levadas a cabo várias iniciativas para orientar os governos a acabar com a exploração laboral infantil, tais como a Alliance 8.7, secretariada pela OIT, que conta com dezenas de países e centenas de parceiros estratégicos que a ela se associaram.   

Tratando-se de um problema que afeta sobretudo alguns países, este é, como dito, um problema global que apenas poderemos resolver se a comunidade internacional se juntar nas medidas base para o resolver. Apesar dos esforços de entidades como as Nações Unidas e da existência de uma estrutura ampla que condena e proíbe o trabalho infantil, ele continua a persistir em muitas partes do mundo, sobretudo em países em desenvolvimento. É uma ideia generalizada entre a maioria dos países de que é preciso fazer mais para combater este problema. Inclusive, muitos stakeholders, como por exemplo grandes nomes da indústria têxtil em que o trabalho infantil é tristemente notório, têm vindo a tomar medidas para mitigar este problema nos países onde têm a sua produção.  

A UE está empenhada em proteger os direitos da criança, tanto nas suas políticas internas como externas. O artigo 32.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE proíbe o trabalho infantil e as instituições da UE têm de ter esta carta em consideração na criação e implementação legislativa e de ações concretas. No entanto, cabe a cada país-membro legislar e implementar políticas sociais e mecanismos de prevenção do trabalho infantil, tais como medidas para promover a educação e a equidade no acesso à educação. 

A União Europeia protege os direitos da criança através das suas políticas internas, mas também através das suas políticas externas e tem vindo a implementar medidas para combater o trabalho infantil, e aplicado uma série de medidas para proteger os direitos da criança reconhecidos internacionalmente, nomeadamente através do apoio a países parceiros na promoção, proteção e cumprimento dos direitos da criança com foco nos direitos económicos, sociais e culturais. Além disso, a UE financia regularmente projetos para o desenvolvimento destinados a combater esta prática. 

A nível global, sobretudo nos países e regiões em que o problema do trabalho infantil persiste de forma mais agravada, é necessário e também é possível implementar medidas de prevenção, tais como:  

– promover o acesso à educação e capacitação das raparigas – que demasiadas vezes sucumbem a trabalho infantil doméstico, frequentemente não remunerado;  

– mobilizar recursos (nacionais ou de cooperação, se for o caso) para a erradicação do trabalho infantil e apostar na prevenção ativa do trabalho infantil;  

– desenvolver e/ou reforçar estratégias para fazer face às formas ilícitas de trabalho infantil; 

– intensificar medidas concretas para identificar e retirar crianças de contextos de trabalho infantil, sobretudo quando este se desenrola em ambientes perigosos;  

– e, finalmente, promover ações de sensibilização e educação nos países onde o trabalho infantil é uma prática comum ou bem vista. 

 Em Portugal, ainda são identificados casos em que crianças menores de idade trabalham, ainda que por lei exista o período de escolaridade obrigatória?  

Portugal fez avanços enormes nas últimas décadas em matéria de erradicação do trabalho infantil.  

Este progresso deveu-se a uma justaposição de três medidas: uma primeira laboral, através do Código de Trabalho (CT) definindo a idade mínima para trabalhar (16 anos inclusive, desde que o adolescente esteja matriculado numa instituição de ensino ou tenha concluído o 12º ano)uma segunda educativa com a definição da escolaridade mínima obrigatória  (inicialmente até ao 9º ano e atualmente até ao 12º ano ou 18 anos de idade); e uma terceira de proteção social com a implementação de diferentes medidas, mas entre as mais importantes as de apoio ao rendimento (abono de família, RSI, entre outro tipo de prestações sociais). 

Relativamente a casos de trabalho infantil detetados no nosso país, o mais recente relatório de avaliação das CPCJ identificou em 2019 – e estes são os dados mais recentes que temos, pois ainda não foram divulgados os de 2020 – um total de seis casos de exploração infantil em Portugal, sendo que apenas dois se inseriam no quadro do trabalho infantil.  

Fizeram-se muitos progressos no nosso país nas últimas décadas, mas enquanto existir uma única criança em situação de exploração infantil – seja de que natureza for – não podemos descansar, teremos que manter uma vigilância apertada, não esquecendo que é nos momentos de crise económica e social como o que vivemos hoje que estas situações tendem a reaparecer.  

Que estratégias são utilizadas pela Unicef para identificar e sinalizar casos de trabalho infantil?  

UNICEF trabalha e coopera com os governos e entidades locais diretamente definindo estratégias de atuação não só para a identificação destas crianças, mas também na definição de estratégias para a prevenção do trabalho infantil.  

No que diz respeito à identificação das situações concretas, as equipas do terreno da UNICEF juntamente com o Governo, as entidades locais e os seus parceiros desenvolvem mecanismos próprios de identificação destas crianças. A relação e coordenação com os sistemas de proteção nacionais, as forças de segurança, o sistema educativo e de saúde é fundamental para a identificação destes casos e para a implementação das estratégias que contrariem o fenómeno. Da maior relevância também é o trabalho desenvolvido pelo serviço social local e pelo sistema educativo. 

Tal como em Portugal, os assistentes sociais desempenham um papel fulcral no reconhecimento, na prevenção e na gestão de riscos que podem desencadear situações de trabalho infantil.  

Uma das áreas chave de atuação da UNICEF é a capacitação e apoio a estes profissionais que estão no terreno O seu trabalho passa por identificar potenciais situações de trabalho infantil; responder e gerir os casos existentes e definir mecanismos de proteção social apropriados para cada caso. Falamos por exemplo da importância de dotar o sistema da capacidade de identificação precoce e da capacidade de integração social/reabilitação da criança identificada nessa situação.  

O sucesso desta integração está diretamente ligado ao regresso dessa criança à escola. A escola é –deve ser- um espaço seguro de desenvolvimento pleno.  A integração na escola é um momento crítico para estas crianças. Esta relação estreita entre o sistema de proteção e o sistema educativo, diminuem fortemente a probabilidade de uma criança regressar ao trabalho. A consciencialização das famílias sobre a importância da escola é um fator crítico. Se a família não valoriza, será muito difícil para a criança manter-se na escola.  

Assim, as iniciativas de sensibilização da sociedade em geral, das comunidades locais e dos pais em particular, fazem parte desta estratégia. Estas campanhas de sensibilização focam-se na desmistificação de normas sociais que justificam e, portanto, perpetuam o trabalho infantil. Programas locais para prevenir a violência, a exploração e o abuso de crianças implementados conjuntamente com os governos nacionais ou com as autoridades e instituições locais completam a estratégia e a área de atuação 

Mas para fazer diagnósticos e encontrar estratégias, precisamos de informação. Assim, em parceria com a OIT, colaboramos na recolha de dados para a compreensão do fenómeno e para a sensibilização dos decisores políticos.  

A recolha de dados e a qualidade da informação são uma preocupação constante da UNICEF na definição da sua atuação e para uma correta avaliação do impacto do nosso trabalho. E tudo começa com o registo de nascimento. É fundamental garantir que cada criança tem o seu registo, só assim a criança “existe”. O reforço dos sistemas de registo de nascimentos – uma das grandes lutas da UNICEF nas últimas décadas –, tem contribuído para que todas as crianças possuam uma certidão de nascimento que comprove que são menores de idade para trabalhar. Este é um documento único, garante dos seus direitos. 

Do ponto de vista global, quais os países onde há maiores taxas de trabalho infantil e que trabalhos é que são mais exercidos?  

Quase metade das crianças entre os 5 e os 17 anos envolvidas no trabalho infantil, 72 milhões de crianças, vivem em África – sobretudo na África subsaariana, seguindo-se a Ásia e o Pacífico como as regiões onde esta prática é mais comum. 

“Ao contrário do que se possa pensar, o trabalho infantil não ocorre apenas em países de baixo rendimento.”

70% destas crianças trabalham na agricultura, 11.9% no sector industrial, como o do calçado ou o do vestuário, e 17,2% nos serviços. A UNICEF prevê que, com o deslocamento de pessoas de zonas rurais para as cidades devido às alterações climáticas, esta distribuição se vá alterar.   

Em todas as regiões verificamos um número semelhante de rapazes e raparigas envolvidos em trabalho infantil. No entanto, é relevante referir um dado importante, e que não é considerado nas estatísticas de trabalho infantil, que se prende com o trabalho doméstico que, na sua esmagadora maioria quando existem crianças envolvidas, recai sobre as raparigas. Aqui, a carga horária é muitas vezes superior a 40 horas por semana e não é remunerada. 

Ao contrário do que se possa pensar, o trabalho infantil não ocorre apenas em países de baixo rendimento. Mais de metade de todas as crianças envolvidas nesta realidade vivem em países de rendimento médio-baixo e médio-alto. Apesar de se tratar de um problema mais crítico em países em desenvolvimento, é importante salientar que o crescimento económico dos países em si não anula o trabalho infantil. 

Quais os principais motivos que levam as crianças a ter de trabalhar, para além de situações familiares marcadas pela vulnerabilidade económica?  

O trabalho infantil tem as suas raízes na pobreza, na insegurança de rendimentos do agregado familiar, na inexistência ou insuficiência de serviços públicos de cariz social. 

“As causas de trabalho infantil nos nossos dias continuam a ser na sua essência as mesmas, e a maior tem a ver com a pobreza.”

Em muitos países e sociedades existem crenças que perpetuam o trabalho infantil, como o de que trabalhar tem um efeito positivo no desenvolvimento do caráter das crianças ou que lhes proporciona uma série de competências importantes. Há famílias em que isso é quase uma tradição que vai passando de geração em geração. Noutros casos, acredita-se que as raparigas não devem estudar e, por isso, são remetidas para funções ligados às tarefas domésticas e de apoio à família, como tomar conta dos irmãos ou de outros membros da família. 

As causas de trabalho infantil nos nossos dias continuam a ser na sua essência as mesmas, e a maior tem a ver com a pobreza. A implementação de medidas de erradicação da pobreza e de acesso à educação são essenciaisMas é igualmente importante um acordo internacional que incida sobre o trabalho infantil.  A falta de um consenso internacional sobre este tema esbate os limites do conceito do que é trabalho infantil e é nesta zona cinzenta que este, muitas vezes, prolifera  

A ONU declarou o ano de 2021 como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. O que é que se espera definir este ano e para os próximos dez anos?   

As Nações Unidas definiram como objetivo eliminar o trabalho infantil até 2025, em todas as suas formas e pôr fim ao trabalho forçado, tráfico de pessoas e todas as formas de escravatura moderna até 2030, ano em que terminam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, ou agenda 2030 

Assim, o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil é uma motivação extra e um passo importante no caminho para pôr fim a esta prática. Sabemos que este é um esforço que, apesar de depender maioritariamente da vontade política, precisa do impulso da sociedade civil e esse é precisamente um dos grandes objetivos deste Ano Internacional que apela ao envolvimento do público em geral. 

Antes da pandemia, todos os números apontavam para uma tendência de decréscimo. A COVID-19 veio inverter esta tendência, mas a esperança é a de que os governos consigam implementar medidas de proteção social efetivas que levem à retoma deste declínio dos números. Sabemos que existe uma consciencialização internacional cada vez mais ativa nesse sentido e que é impulsionada pelos mercados globais, pela transparência e responsabilidade económicas e, não menos importante, pelo comportamento do consumidor.  

Do nosso ponto de vista, o objetivo de eliminar o trabalho infantil é alcançável se todos os parceiros e responsáveis políticos tomarem as decisões e assumirem compromissos. Para isso, é importante estabelecer novas parcerias entre todas as partes envolvidas, aumentar a sensibilização da sociedade e reforçar os enquadramentos legais – nacionais e internacionais – que proíbam o trabalho infantil de forma inequívoca e eficaz. 

 
 
 

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