“E se a água não caísse?”

Kon-Kon Afonso!

Bu mansi dritu?

Tu que agora tens vontade de deixar a fralda, estás a descobrir que, uma das primeiras coisas que fazemos quando nos levantamos, é fazer xixi. Depois, puxamos o autoclismo e lavamos as mãos. Entretanto, nas primeiras horas do dia, também tomamos banho de chuveiro, lavamos os dentes, bebemos água, tomamos o pequeno-almoço e outras tantas coisas antes de sair de casa. Ora, grande parte das atividades de preparação para um novo dia implica um bem precioso: a água. E nem nos questionamos se sairá água ou não, quando abrimos a torneira. É um bem quase garantido e só nos lembramos do quão importante é nos raros momentos em que falha.

Mas por cá, esse bem precioso não é garantido. As tarefas que por aí são rotineiras, cá merecem muito esforço. Mulheres e crianças têm de andar todos os dias para conseguir água. Algumas andam muitos quilómetros com baldes vazios até chegarem ao poço. Aí, têm que ter força suficiente para puxar a água do poço e depois regressam com baldes cheios de água em cima da cabeça. Essa água que transportam é o que terão de disponível para higiene, alimentação e limpeza de toda a sua família naquele dia. E todos os dias têm esta tarefa. Faz parte da rotina de cá. E não é uma tarefa fácil – falo por experiência própria já que um dia fiz esse caminho com um grupo de mamãs. O caminho com o balde vazio é uma diversão e realmente não custa nada. Mas quando se chega ao poço e se começa a tirar água, percebe-se que os braços irão ficar como os do Popeye e que, tal como ele, eu devia ter comido mais espinafres para ter força. No final, coloquei o balde cheio de água na cabeça – será que consegui dar um passo? Sim, mas apenas um passo e a sorrir passei o balde para a mamã. Teria de ter muitas aulinhas para conseguir fazer a caminhada que elas fazem todos os dias.

Foi por tudo isso que, enquanto caminhava pela tabanca (aldeia) no outro dia e vi uma criança, que não deveria ter mais do que seis anos, a carregar água, percebi o esforço que ela estava a fazer. Não tinha o balde na cabeça. Provavelmente nem conseguiria dar um passo com aquele peso todo. Segurava no balde preto com as duas mãos e uma cara de muito esforço, enquanto lutava para dar cada passo. E o sol, de tão intenso, não ajudava. O meu primeiro impulso foi o de lhe oferecer ajuda. Mas lembrei-me de que essa ajuda poderia não ser útil: amanhã e todos os dias que se seguirão, ele terá de fazer a mesma caminhada com a mesma cara de esforço. Por isso, optei por dizer-lhe: “Força! Tu consegues!” A cara de esforço transformou-se num enorme sorriso e pareceu ganhar músculos de ferro, dando passos rápidos. Continuei o meu caminho e disse mais uma vez: “Força! Tu consegues!” O sorriso manteve-se e a distância até casa tornou-se mais pequena. Quando ele provavelmente achou que eu já não o conseguia ver, os braços começaram a fraquejar novamente e os passos a tornaram-se mais pequeninos. Voltei a gritar: “Força! Tu consegues!”. E ele, sem pousar o balde no chão, olhou para trás e deu um sorriso ainda maior, continuando o seu caminho.

A minha esperança é a de que esta criança, e como não sai água da sua torneira, se lembre sempre que tem a força suficiente para transportar o balde de água preto com as duas mãos.

Um sorriso cheio de força da tia-que-vive-na-selva.”

 

Excerto do livro “Cartas da Tia que vive na selva – Aventuras do dia-a-dia de quem vive à busca dos sonhos“, de Isabel Fernandes, à venda na Loja Online AMI.

Cartas da Tia que vive na selva