É apenas uma aldeia de escravos

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Texto: Luís Pedro Nunes | Fotografias: Alfredo Cunha

 

Podemo-nos comover com uma fotografia aí sentados em casa. Já aconteceu. É tremendo o poder de uma imagem. Mas quando temos uma agenda apertada de situações humanitárias limite num país que está em último lugar no índice de Desenvolvimento Humano, o cérebro começa a arranjar defesas e a ficar dormente. Estamos ali nos locais e vamos banalizando a miséria no seu estado puro.

Estamos na República do Níger há cinco dias e somos uns privilegiados. Normalmente já teríamos sido detidos e recambiados. Pouca gente sabe sequer o que é o Níger. Quando dizemos que estivemos lá pensam que estamos a falar da Nigéria que é outro país que faz fronteira – esse sim conhecido e nas notícias. Níger – ex-colónia francesa, 16 milhões de habitantes, 2/3 é deserto. A norte tem a Líbia e a Argélia. A sul, a Nigéria e o Benim. A este, o Chade. E a oeste, o Mali e o Burkina Faso. Um pesadelo

em termos securitários e um pólo agregador das rotas de emigração para a Europa. Um dos países mais pobres do mundo. E dos mais esquecidos. Não tem guerra civil e lá tem conseguido evitar golpes de estado nos últimos anos. Tem uma ténue economia entregue parcialmente a chineses e recursos naturais como urânio, explorado pelos franceses, e a alma a ser encantada por um islão cada vez mais revoltado. Está algures perdido na África ocidental a ser devorados pelo deserto e pela miséria. E uma população que irá duplicar em menos de 20 anos. Termos ido na comitiva da AMI, ali em missão exploratória para parceiras humanitárias, concedeu-nos a possibilidade que não é dada a jornalistas há anos: a de ficar no país com o benefício da dúvida. E de sermos recebidos por ministros e pela primeira-dama e de ir ao terreno. E de termos feito bons amigos. Nessa manhã, já com um calor que na nossa perceção iria roçar os 50 graus (talvez sejam só 45 ou 46) estávamos pois a deixar Niamey, a capital, com escolta militar, passar as barreiras policiais na estrada e chegar a essa tal aldeia de escravos num local desolador que uma associação de direitos humanos locais, a Timidria, apontava como exemplo de sucesso na auto-determinação. Uma aldeia de escravos entre tantas. Esta tinha apoio.

Os jipes param. Chegámos a Gurti Korà. Os soldados posicionam- se porque sim. A aldeia corre para nós com os mais velhos à frente para nos cumprimentar efusivos, agarrando a nossa mão com as suas em concha, ou puxando ligeiramente o braço e segurando o antebraço como se quisessem evitar que ao fazer o cumprimento o nosso não se machucasse. Há sorrisos desdentados dos anciãos que mostram grande satisfação. Crianças, sempre elas, por aqui, por ali, por todo o lado, as mulheres a carregar bebés. Sempre. Afinal, a média de filhos por mulher é de sete. Sim, sete por mulher.

Visualmente é “apenas” mais uma aldeia. Uma aldeia que é um espaço desolado de cabanas. Talvez mais miserável e esmagada pelo sol no meio do nada numa terra de cor alaranjada do Sahel.

O dirigente da Timidria pede para reunir a aldeia debaixo da árvore mais frondosa para depois fazer a visita. Homens mais velhos nas cadeiras em meia lua, mulheres mais velhas no chão sentadas no centro (toca um telemóvel? É de uma delas? Há assim momentos absurdos nas pregas do absurdo). As mais novas de pé atrás. Crianças a zumbir por todo o lado. O chefe tem a seu lado o professor que irá traduzir do idioma local para francês. É suposto estarmos numa aldeia a que foi concedida, de alguma forma, a libertação, ao terem a proteção da associação que lhes arranjou as terras. Um pequeno exemplo de sucesso. É difícil explicar… Oficialmente não há escravatura no Níger desde 1960. É criminalizada desde 2003. E no entanto, aquelas pessoas que estão ali connosco não têm direitos. Existência jurídica. O professor primário tem que repetir várias vezes a tradução do chefe da aldeia (que não fala francês) até que o representante da Timidria – homem de coragem, um negro grande imponente licenciado na Sorbonne – perceba finalmente o que se passou. No chão, sentadas nos panos, as velhas acenam com a cabeça e murmuram em concordância. Já perderam tudo de novo. Não têm nada. Nem terras, nem poço de água. De repente, há um buraco que se abre para uma existência de outro tempo. E depois de estarmos lá dentro tudo faz sentido mesmo que seja como numarealidade paralela.

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 Esqueçamos o calor e a sede. Aqueles seres humanos que estão ali à nossa frente e que existem – já lhes tocámos, têm textura, pele e vida e estão a sofrer – são escravos. E não se trata de uma expressão. Pertencem, como uma cadeira ou uma vaca, a outros seres humanos. E são-no eles como foram os seus pais e avós há gerações e gerações. (Falámos todos depois sobre isso no ar condicionado do hotel: como o próprio modo de encarar é diferente, as cabeças e os queixos baixos que olham de um nível inferior para cima, os braços cruzados, uma aflitiva subserviência e acomodação que não reproduz a vilania do que o chefe está a relatar. Há um sismo dentro de nós naquele semideserto amarelado.)

É que vou explicar de novo. Há uma outra aldeia a uns quilómetros que é senhora e dona desta e bem como destes seres humanos. E que ainda vem buscar as mulheres para as levar e utilizar sexualmente. Mesmo que sejam casadas. É disto que falo quando digo que são escravos. E os homens tratam do gado e são tratados como gado. Não é um eufemismo. Mas o que se passou em Gurti Korà para estarmos ali debaixo da árvore e o ambiente estar pesado? É que houve um imbróglio qualquer, porque a Associação Timidria tinha arranjado maneira de eles terem uns dois hectares de terra e um poço de água. A tradução vai e vem entre complicações, pois também envolve más decisões do chefe que, por isso, deve estar a enrolar a história. Aparentemente na sua ambição de aldeia libertada terá votado num chefe maior de todas as aldeias que acabou perdedor. O que levou à ira do novo líder que unilateralmente obrigou à venda de terras e mandou tapar o poço. De repente, começamos a achar que faz sentido. Até há ironia. Dentro daquelas regras, uma aldeia “libertada” usou a sua liberdade para votar no líder errado e viu-se de novo na condição de escrava que nunca terá perdido para o outro. E as velhas acenam com a cabeça. Atrás de mim, um miúdo de dois anos encosta a ponta do nariz na minha nuca. Tem uma t-shirt verde com letras amarelas a dizer OBAMA. É uma marca de roupa local. “E vivem de quê?”, o chefe encolhe os ombros. De ajuda. Olho em redor e não vejo nada. Nem uma cabeça de gado. Nada. Não se consegue perceber. Não é para perceber. Cá dentro, as nossas estruturas começam a ceder. Se calhar pensamos que isto é apenas um caso. Não. É apenas um entre tantos. Contam-nos que tínhamos passado pelo que pensávamos ser apenas o centro de uma aldeia, mas é um caminho de areia que divide duas: de um lado a aldeia dos escravos; do outro a dos senhores. E não se misturam.

Os escravos são uma questão regional de todo o Sahel. Da Mauritânia ao Senegal, do Chade ao Sudão. E as autoridades do Níger, pelo menos neste momento, dizem estar abertas ao tema, para que deixe de ser tabu. Mas que tema é este? O que é um escravo? Não estamos a falar propriamente de um bem transacionável mas de um ente que nasce sem direitos. Há aqui um mundo de diferenças. E é-nos difícil porque queremos algo para nos situar. Serão como os “intocáveis” na Índia? Não mas… É uma questão cultural, que vem desde a tradição tuaregue e que agora tem vindo a ser ainda mais intensificada com a crescente islamização do país e a “norma da 5ª mulher” que é uma interpretação regional do Islão.

A escravatura está entranhada na sociedade do Níger, seja urbana ou rural e não só nas etnias tuaregues (que tem um complexo sistema de castas) e mauberes, sendo que a maioria dos casos de escravos vem perdida na árvore das gerações. Mas não se pense que chega ali e é algo que salta à vista. Podemos olhar e nada ver. Não há marcas nem sinais, grilhetas ou correntes. Apenas inexistência de direitos de ser um humano acomodado há gerações a este facto, sem hipótese de mudar. Fomos dar uma volta pela aldeia. O índice de natalidade nem é dos mais altos. Para 600 pessoas há 200 crianças. Duas das “salas” de aula são de palha e as crianças estão perfiladas, muito arranjadinhas, vestidinhas e compostas. São desafiadas a ler uma frase no quadro. Digo-vos que seria uma cena até inverosímil num telefilme americano de tão perfeita que saiu. A palhota no deserto, as crianças escravas, lindas e enternecedoras, a ler num tom suave e doce uma frase em francês carregada de “rrr”. O sol a entrar pelas frechas das canas do tecto, o silêncio delas, o ar submisso mas muito direito, a incapacidade de as “desmontar” para um estado de crianças naturais, a certeza de que elas já sabem que são “escravas”. Que idade tens? Não sabe. Ali sim, qualquer coisa bateu em todos nós. Bateu. Saímos diferentes lá de dentro. Tínhamos descido a um estado de compreensão e entendimento do abjecto e sem perder as nossas referências. Estávamos cá em baixo agarrados a um ponto de interrogação impotentes e derrotados. E chega a agitação da partida. Os cumprimentos a todos. Tanta alegria. A sensação de que dentro de minutos ali ficariam apenas uns rastos de jipes e o silêncio e o calor. Havia uma sensação de indignação misturada com uma raivazinha. Mas não sei se devemos ir por aí. Apenas o não querer esquecer aquele momento em que faltou o ar quando saímos da sala. É a diferença quando a realidade nos é descodificada. Dias antes, tínhamos estado num campo de deslocados que tem o patrocínio da primeira-dama Aissata Iossoufou Mahamadou. Trata-se de uma população que vivia numa pequena ilha no meio do Rio Níger que há dois anos foi devastada pelas cheias. Um dos dramas deste país, a juntar à bomba demográfica: as alterações ambientais, o avanço do deserto, a erosão, alterações do rio seguidas de períodos de seca.

Os habitantes da aldeia tiveram que ser mudados para uma zona a dois quilómetros da margem e só agora se está a tentar arranjar um terreno para que se consiga construir uma nova aldeia. Lá estivemos a ver e conversar. E mesmo sendo uma aldeia da Fundação Guri da primeira-dama, as condições são humanamente difíceis de descrever. Pedaços de tendas de ajuda humanitária cosidas a canas fazem de abrigo a centenas de pessoas. O folheto da Fundação não esconde a realidade do país: índice de fecundidade de 7,1, (a mais elevada do mundo) e uma taxa de crescimento anual da população de 3,3 o que faz uma pressão brutal sobre os recursos naturais e uma taxa de mortalidade infanto-juvenil de 130%, sendo que 65.9 vive abaixo do limiar da pobreza e as mulheres são 2/3 dos pobres. Está o retrato feito com números. Visitar esta aldeia já é de si uma experiência poderosa. Mas quem está habituado a fazer missões humanitárias em África sabe que esta é a realidade em muitos países. Demasiados mesmo. O que não sabia, e soube-o só depois, é que também esta era uma aldeia de escravos. E faltou este “filtro”. E entre ver uma aldeia de deslocados, de gente sem nada, num dos países mais pobres do mundo e perceber que é uma aldeia de gente sem nada num dos países mais pobres do mundo, mas de gente escrava – teria feito toda uma civilização de diferença. Nunca a palavra escravo foi mencionada.

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 O que queriam era saber como chegar ao rio e pescar. E ter de novo uma aldeia a que chamar sua. Devemos suspeitar do que vemos e como vemos. Mesmo o que vos conto é parte de parte de uma teia. Não se percebe uma mistura de culturas centenárias numa semana. Claro que a escravatura é um tema tabu para mostrar a olhos externos mesmo que se diga que não. Está tão enraizado na sociedade que só deve parecer estranho quando alguém de fora coloca o assunto para a mesa. E deve fazê-lo com cuidado. “Ter” escravos… Desconfiamos mesmo que deve ser banal mesmo nas classes mais altas. Nunca o saberemos. E a escravatura está escondida sob forma de matrimónio. É a chamada 5ª mulher e

que no fundo é o grande alimentador desse ciclo. E não vai ser qualquer ONG ou movimento externo ou grupo de pressão que irá alterar a situação. O Islão permite ter quatro mulheres, mas no Níger um homem pode ter mais, no que é conhecido pela 5ª esposa (que podem ser 5, 10, 15 ou mais… mas sempre conhecidas pela 5ª. É tudo uma questão de dinheiro). A questão é que não só não há casamento em si, como ela não obtém nenhum direito matrimonial sendo, no fundo, uma escrava não só do marido como das quatro mulheres legítimas. As relações domésticas acabam por ser mais complexas. A 5ª esposa é obviamente muito mais nova, não tem “dia fixo”, o que cria uma disrupção no equilíbrio estabelecido. É sabido que muitas das legítimas têm ciúmes, o que leva a abusos sobre as 5ªs mulheres. E ociclo da escravatura recomeça, dado que os filhos destas também não têm quaisquer direitos. E trata-se de uma distorção do Islão, pois é-lhes dito que é vontade de Alá que sejam escravos e só se obedecerem ao seu dono é que irão para o Paraíso quando o Corão diz precisamente que nenhum muçulmano tem poder para escravizar outro muçulmano. Mas esta é uma visão muito parcial de um povo e de um país. Podíamos ter estado dias sem fim na capital, Niamey, e vivido numa caótica “normalidade” de uma capital chocante de pobre. Trata-se de uma cidade de milhares de motas chinesas, carros que serpenteiam, sem regras e gente que sorri. Vêem-se milhares de sorrisos. Se o primeiro impacto é a cor da terra amarelada que se confunde com as paredes. O segundo é o lixo e o plástico que voam por todo o lado como parte das paisagens. O terceiro serão os sorrisos. Eu e o Alfredo fizemos a cidade de uma ponta a outra. Só com um motorista. Não tivemos um problema.

Há poderosas armas para usar: um sorriso e um “bonjour!” ou um “salam aleikum!”.

Mas entre a aldeia dos escravos e o turbilhão da cidade há camadas complexas de existência que só posso descrever. São o formigar colorido de pessoas nos mercados, a passar de um lado para o outro, a fazer pela vida e a conseguir passar mais um dia. De que vivem? Fazem biscates, desenrascam-se. O Alfredo avança a um ritmo acelerado a fotografar. É impressionante os milhares de telemóveis. A quantidade de cartões pré-pagos que se vendem na rua. Dizem que os chineses já dominam 50 por cento da economia e, contudo, nunca vimos um chinês. Só o mega-coumpound completamente fechado onde há hotéis de escritórios. E crianças. Em todo o lado. E como é que a maior parte delas tem uma camiseta de futebol? Os telemóveis são chineses. Há miúdos de telemóveis, mas são só a carcaça. Avançamos para uma lixeira perto do matadouro. É um fosso muito profundo no Inferno da parte mais que insanamente pobre da cidade. Plástico (sempre ele) a arder. Um burro, cabras, calor das chamas, uma criança no meio daquilo, um tipo tresloucado que me tenta vender um par de chinelos plásticos meio queimados, outro que parece avançar com uma barra de ferro para nós e passa ao lado. A estes, numa clínica ali ao lado em que estivemos, chamam os indigentes. Há gente curiosa. Um velho muçulmano não está a gostar que se esteja a fotografar aquilo. É natural. Nada nos foi propriamente escondido na capital da República do Níger. É bom que se perceba que isto é uma seleção do mau. Fomos ver o pior do pior.

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As urgências do hospital central onde as poças de sangue se acumulam no chão e cada um tem que trazer as talas para as suas fracturas (mesmo que seja um pedaço de papelão) ou um centro de mulheres com fistulas obstetrícias – grávidas que se rasgaram de dentro por não terem tido uma cesariana e que se vêem ostracizadas pelos maridos. Homens a curtir peles de cabra num cheiro nauseabundo ao calor da uma da tarde que posam, mas sabem que o Benfica joga nesse dia. É uma visão parcial. Podíamos ter ido ver as girafas e os hipopótamos e não fomos. Ou o trabalho de outras ONGs. Já fomos recebidos em países em que se vê o esforço para “compor” a chegada de uma delegação. Aqui nem haveria como. É o que é. O país sabe que é pobre. Um dos homens que nos recebeu também fez notar um pormenor: não temos muito para dar mas esmeramo-nos a receber bem. Foi verdade. Tanta cordialidade e cordialidade espontânea e não a descrevi aqui. Não há agressividade. A desconfiança inicial é esbatida no primeiro minuto. Os homens são imponentes, as mulheres graciosas as crianças lindas e, contudo, sabemos, eu sei, alguns de nós sabemos, que tudo vai piorar. Muito. Basta pensar que a população daquele país vai duplicar e então o que vai acontecer à Europa? Também fomos a jantares faustosos. Podíamos descrever mas seria demagogia. É África. Pessoas a querer receber bem. E fomos porque a diplomacia faz parte deste trabalho. Agora que leram e que deu para perceber que há uma realidade por baixo do que se vê e do pouco que se sabe, também que se perceba que diabolizar o Níger não vai resolver nada. Pelo contrário. Se há coisa que o Níger precisa é de uma mão e não de um punho cerrado ou um dedo apontado. E este texto é uma declaração de amor pelo Níger e por aquelas pessoas que vão buscar um sorriso a uma zona que, pelos vistos, a alma conserva sempre intacta.

Da viagem ao Níger resultaram três projetos da AMI em parceria com três organizações locais (PIPOL): a reabilitação da Clínica Gamkally e formação de profissionais de saúde, a construção de uma escola e um dispensário solicitadas pela Fundação Guri para a futura aldeia de pescadores deslocados. E juntamente com a associação Timidria a aquisição de um terreno para a futura construção de uma escola e de um poço para a aldeia de escravos de Gurti Korà.


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