Afeganistão: uma crise anunciada

 

Com o avanço dos talibãs e 26 das 34 capitais provinciais sob o seu domínio, o presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, abandonou o país, procurando refúgio nos Emirados Árabes Unidos com a família. Os Talibã assumiram o controlo da cidade de Cabul, capital do país, e do Palácio Presidencial.   

A tomada de Cabul levou a que milhares de afegãos tentassem abandonar o país a todo o custo, concentrando-se em massa no aeroporto da capital, tentando escapar ao domínio talibã, deixando tudo para trás. A reconquista do grupo armado deixou milhares de vidas em suspenso. As pessoas fogem da opressão e das suas armas. 

A rápida tomada do poder pelos Talibãs pôs, logo nos primeiros dias, em causa  a garantia dos direitos e liberdades obrigando os cidadãos a submeter-se à lei islâmica da Sharia. O país é agora denominado como “Emirado Islâmico do Afeganistão”.  A grande maioria da comunidade internacional espera que a transição de governo “seja pacífica”, embora admita que não será certamente democrática. 

Apesar das tentativas de conversações de paz entre as forças internacionais e os grupos talibã ao longo das últimas décadas, a população do país tem vivido incessantemente perseguida, em diversas regiões do país. Foram investidos 2,26 mil milhões de dólares pelo governo americano para combater os Talibãs numa guerra que durou duas décadas e que ceifou a vida de cerca de 300 mil civis, sem alcançar o resultado pretendido de travar o crescimento da milícia talibã e destabilizando a região a vários níveis. Cifra-se em milhões o número de pessoas internamente deslocadas, centenas de milhares de pedidos de vistos nas embaixadas e prevê-se um fluxo galopante de refugiados para os países vizinhos, para a Europa, Canadá e Estados Unidos.  

 

Ser jovem e afegão 

De acordo com a Missão das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA), o Afeganistãé “dos países mais perigosos do mundo para as crianças” que, ao longo da última década, têm sido recrutadas para combate, particularmente por grupos armados, pelas forças de segurança afegãs e pela polícia local, enfrentando múltiplos abusos, inclusive sexuais” – pode ser lido no site da Amnistia Internacional.  

Praticamente metade da população de 30 milhões tem menos de 18 anos, um dos grupos etários mais vulneráveis, uma vez que não existe proteção social no país que previna casos de recrutamento, violência, casamentos precoces, falta de acesso à saúde e à escolaridade obrigatória.  

Tanto rapazes como raparigas são alvo de trabalhos forçados e perigosos (como em minas), violência em casa e no espaço público, o que também tem contribuído para os números de mortes de jovens no país, de acordo com os dados da Amnistia Internacional. 

Levados a sair do país pela pobreza extrema, conflitos armados e violência, crianças afegãs, entre os 12 e os 17 anos de idade, procuram trabalho em países como o Irão ou o Paquistão como imigrantes ilegais, e há quem arrisque a travessia da Turquia para a Europa, chegando como menores não acompanhados.  

Sozinhos e sem suporte familiar, estas crianças são extremamente vulneráveis a situações de tráfico humano e exploração do trabalho infantil e sexual. 

No Afeganistão, a falta de proteção social de menores e de registos de nascimento fiáveis levam as crianças a serem levadas à incerteza económica e financeira e consequentemente, a ficarem mais suscetíveis de serem recrutadas por grupos armados, como os Talibã.  

Mulheres invisíveis  

Nos primeiros dias da tomada do país pelos Talibãs, as escolas e universidades foram encerradas, as mulheres proibidas de exercer atividades profissionais e obrigadas a permanecerem nas suas residências.  As ruas da cidade de Cabul ficaram desertas. 

De acordo com os números do Banco Mundial, citado pela BBC e pelo Jornal Económico, em 1999 não existiam registos de raparigas matriculadas em escolas secundárias. Atualmente, aproximadamente um terço da comunidade universitária é composta por mulheres, ou seja, cerca de 3.5 milhões de estudantes. 

Ainda que tenham ocorrido progressos significativos no campo da educação e igualdade de género, as mulheres afegãs foram, e ainda são, alvo das maiores violações de direitos humanos. Execuções e apedrejamentos são conduzidos por alegados adultérios e insurgências em praças públicas e estádios. As mulheres foram, nos últimos dias, proibidas de trabalhar e frequentar universidades, obrigadas a usar a niqab ou a burqa em espaços públicos e andarem exclusivamente acompanhadas pelos seus pais ou maridos. 

A atual crise humanitária é particularmente ameaçadora para os 18 milhões de mulheres e raparigas afegãs que se encontram no país.  

Desde 2001 que ativistas têm lutado para que os direitos políticos, educacionais e reprodutivos das mulheres sejam protegidos no Afeganistão e que a igualdade de género se torne um tema premente da agenda política do governo. Efetivamente, de acordo com a plataforma da MSNBC “Know Your Value”, têm sido feitos progressos ao longo das últimas décadas, já que as mulheres puderem passar a ocupar algumas posições de poder como juízas, ministras e polícias. De acordo com a mesma fonte, em 2020, existia uma maior percentagem de mulheres representadas no Parlamento do Afeganistão do que no Congresso dos Estados Unidos da América.  

No entanto, com a retirada gradual das tropas americanas do terreno desde maio deste ano, houve um acréscimo de mortes civis, sendo 46% dos casos de mortes, mulheres e crianças.   

A crónica inexistência de registos de violência contra mulheres e raparigas no Afeganistão, acrescido do facto de estas temerem consequências, como serem assassinadas por “crimes de honra”, e a falta de confiança nas autoridades, é o resultado para que as mulheres não se manifestem quando a sua liberdade e dignidade é ameaçada.  

Segundo a Agência Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC), existe uma falha persistente em investigar casos de violência contra mulheres no país. A pressão exercida junto às mulheres pelas famílias e comunidades, bem como a falta de mediação e representatividade legal adequada provoca este ciclo de impunidade estrutural no que toca a feminicídios, tortura, castigos corporais, linchamentos, etc.  

Segundo a Aljazeera, Zabihullah Mujahid, porta-voz dos Talibãs, na primeira conferência de imprensa oficial do grupo, afirmou que “estavam comprometidos em deixar as mulheres trabalhar de acordo com os princípios do Islão”  e, ao ser questionado acerca das transformações do movimento talibã nos últimos 20 anos, afirmou que “se for uma questão de ideologia e crença não há diferença, mas se calcularmos com base na nossa experiência, maturidade e visão, não há dúvidas que existem muitas diferenças”.  

Não obstante, a violência gratuita e a opressão continuam a ser prática corrente no país. No dia da Independência do Afeganistão, na cidade de Asadabad foram reportadas dezenas de mortes por cidadãos exibirem a bandeira nacional do país. Segundo o Relatório de Avaliação de risco das Nações Unidas, as milícias talibã estão numa espécie de campanha porta-a-porta à procura de membros da resistência e das suas famílias, ameaçando de morte suspeitos opositores ao novo regime.  

Milhões de novos refugiados 

Antecipa-se que esta crise venha a gerar novas vagas de refugiados em várias partes do mundo, desta vez da população civil afegã, nomeadamente muitos cidadãos que trabalharam como ex-militares afegãos, intérpretes em cooperação com as tropas americanas e empreiteiros, apesar dos Talibãs lhes terem garantido “amnistia”, caso permanecessem no país.  

Enquanto alguns países, como Canadá, Reino Unido, Albânia, Kosovo e Macedónia, estão dispostos a receber requerentes de asilo, países como Áustria e Suíça recusam-se a receber famílias afegãs, tendo inclusive reforçado as suas fronteiras.  

No Irão, com quem o Afeganistão partilha uma fronteira de 900 kms, há tendas a ser montadas em três províncias junto da fronteira para acolher aqueles que atravessem a fronteira, embora o Ministro do Interior e dos Assuntos Fronteiriços, Hossein Ghassemi, já tenha comunicado à Agência de Notícias da República Islâmica (IRNA) a intenção de repatriamento destes cidadãos assim que a situação política no Afeganistão for amenizada, uma vez que o país já acolhe 3.5 milhões de refugiados afegãos, de acordo com os dados do ACNUR.  

No também país vizinho Paquistão, o presidente Imran Khan rejeita a ideia de um novo influxo de refugiados afegãos pela pressão demográfica e social já existente no país. Residem 3 milhões de refugiados afegãos no Paquistão. Embora por agora as fronteiras entre os dois países se mantenham abertas, o Ministro da Informação, Fawad Chaudhry, declarou à Times Magazine que a ideia de ajudar o povo afegão passaria por criar campos temporários junto da fronteira numa “estratégia concertada”, impedindo-os de entrar no Paquistão. 

O Presidente da AMI, Fernando Nobre, adianta sobre este tema que “esperemos que a haver uma nova vaga de refugiados, que essa parte do radicalismo islâmico não se infiltre de novo no ocidente (…) Os estados europeus vão atuar com muita prudência, selecionando mulheres e crianças”.  

Liberdade de expressão ou prisão? 

A insegurança no país escalou desde a última semana e em grande parte do território nacional. Jornalistas, profissionais da comunicação social, ativistas e académicos são parte da população mais vulnerável à opressão dos talibãs, já que não lhes é garantida proteção adequada e temem ser impedidos de aceder a informação e atacados no decorrer das suas funções.  

Representantes de estado, diplomatas e aqueles que tenham colaborado com as tropas americanas foram prioritários de proteger e exilar do país, quando os Talibãs assumiram o controlo de Cabul, no entanto jornalistas e ativistas da sociedade civil que encorajaram o governo e a sociedade afegã à liberalização, após os anos negros dos Talibãs, não receberam até agora nenhum tipo de proteção internacional.  

A liberdade de imprensa tem os dias contados no país e é de esperar que, em breve, a informação que passará para os meios nacionais e internacionais terá o seu discurso controlado pela narrativa da milícia Talibã. 

Segundo o Hindustan Times, Shabnam Khan Dawran, pivot do canal de televisão  RTA (Radio Television of Afhganistan)  foi impedida de entrar em estúdio por oficiais Talibã, enquanto que Mohammad Ilyas Dayee, jornalista correspondente da Radio Azadi, na província de Helmand, é diariamente ameaçado por continuar comprometido em denunciar as operações pelos grupos armados que atentam à paz do país.  

Fawzia Koofi, a primeira mulher deputada, porta-voz no parlamento Afegão, afirmou na passada segunda-feira “a história repete-se a si mesma de forma tão célere”. Os bancos encontram-se fechados e as pessoas estão com dificuldade em adquirir bens essenciais, uma vez que os Talibãs mandaram encerrar temporariamente todos os negócios locais.  

Fernando Nobre, presidente da AMI olha para a situação do Afeganistão com muita expectativa e também com grande apreensão. “O desfecho desta situação já era previsível há vários meses (…) Efetivamente, nos períodos de transição no Afeganistão nos últimos 50 anos, desde a queda da monarquia, sempre houve ajustes de contas.” 

 

 

Histórico da Intervenção da AMI no Afeganistão 

 

Na sequência do atentado às torres gémeas em Nova Iorque, em 2001, e da intervenção militar dos Estados Unidos no Afeganistão, cerca de três milhões de afegãos procuraram refúgio no Paquistão.  A AMI enviou de imediato uma missão exploratória para o terreno.  

Cerca de 1.200 milhões de pessoas chegaram às aldeias de refugiados em torno de Peshawar e cerca de 500 mil vivem na cidade, tendo isso afetado diretamente o já frágil sistema de assistência e prestação de cuidados de saúde. 

Por forma a dar resposta a esta situação e exercendo pressão quer no governo, quer no sector de saúde privado, a AMI desencadeou uma operação de assistência médica e medicamentosa acompanhada por ações de apoio nutricional e formação de pessoal local. 

2002 

Local de intervenção:  Peshawar, Paquistão, junto à fronteira com o Afeganistão 

Organizações parceiras: 3 ONG locais.  

Projeto: Assistência humanitária na área da saúde aos refugiados afegãos  

Objetivo geral: Facilitar a acessibilidade dos serviços e a medicação essencial aos mais necessitados, designadamente crianças e mulheres, através da prestação de cuidados de saúde 

Objetivos específicos: 

  • Construção de um centro de saúde em Peshawar, como complemento dos esforços do governo paquistanês de estender os cuidados de saúde básicos aos refugiados afegãos no local; 
  • Assegurar os cuidados primários de saúde (imunização, cuidados pré-natais e tratamento das doenças mais comuns) e promover a saúde reprodutiva pela prestação de serviços de planeamento familiar; 
  • Assistência alimentar a quem dela precisar; 
  • Diagnosticar os casos de tuberculose, colaborando de perto com os respetivos serviços estatais. 

Beneficiários: 462.000 refugiados afegãos estabelecidos refugiados afegãos 

 

Já em 2014, após missão exploratória do Presidente da AMI a pedido da Organização local “Hope of Mother”, entre 2006 e 2013, apoiámos projetos nas áreas da educação e saúde no leste do país, nomeadamente, a construção e manutenção de uma escola primária para 640 crianças, a dinamização de um centro de formação vocacional, e a construção e manutenção de uma clínica médica junto à escola, de forma a garantir o acesso a cuidados de saúde primários aos alunos e à população local, já que a infraestrutura mais próxima estava a uma distância de 4km. Tal foi feito com a anuência de todos os chefes tribais com os quais foram feitas longas conversações.   

2006/2013  

Local de intervenção:  Jalalabad, Província de Nangarhar, Afeganistão 

Organização parceira: Hope of Mother Foundation 

Projeto: “Construção e manutenção de uma escola primária (Shawl Patcha) em Jalalabad, na província de Nangarhar”  

Beneficiários: 640 raparigas e rapazes que frequentem o ensino primário e 24 professores 

Beneficiários indiretos: Famílias dos estudantes e funcionários 

Objetivos gerais:  

  • Promover o acesso à escola no Afeganistão, aumentar a confiança dos pais e alunos na qualidade do ensino e contribuir para a promoção de um melhor futuro para aquelas crianças;  
  • Contribuir a longo prazo para a substituição do negócio do opio, que é recorrente no país, por outras atividades económicas.  

Objetivos específicos: 

  • Apoio psicológico a crianças órfãs, a crianças necessitadas e às suas mães durante e após a gravidez, de forma a terem acesso a melhores serviços de saúde e educação; 
  • Aumentar o número de alunos a frequentar a escola primária;  
  • Aumentar a confiança dos pais e professores na qualidade da educação;  
  • Proporcionar futuramente um melhor bem-estar económico aos alunos;  
  • Estabelecer um ambiente de boas relações com a comunidade, para que os pais apoiem a iniciativa; 
  • Garantir o salário dos professores, administração e dos funcionários da escola, aumentando os respetivos salários através do Ministério da Educação e contratar um instrutor para dar formação em computadores 

 

2008/2009  

Local de intervenção: Jalalabad, Província de Nangarhar, Afeganistão 

Organização Parceira: Hope of Mother Foundation  

Projeto: “Construção de Posto de saúde junto à escola primária”  

Beneficiários diretos: 430 crianças que frequentam a escola (com capacidade até 640 crianças) e respetivas mães  

Objetivo geral:  Promover a escolaridade através do acesso à saúde 

Objetivo específico: Construir um posto básico de saúde para atendimento às 430 crianças que frequentam a escola primária e respetivas mães 

 

2008/2010  

Local de intervenção: Jalalabad, Província de Nangarhar, Afeganistão 

Organização Parceira: Hope of Mother Foundation  

Projeto: “Centro de treino vocacional”  

Beneficiários: 75 beneficiários diretos dos 3 cursos a lecionar 

Objetivo geral: Contribuir para uma economia sustentável menos dependente de ajuda estrangeira 

Objetivos específicos: 

  • Melhorar as competências, capacidades e conhecimento dos lapidadores locais; 
  • Criar oportunidades de trabalho para as mulheres locais;  
  • Promover o Afeganistão como potencial produtor de pedras preciosas e semipreciosas;  
  • Estimular o investimento estrangeiro direto;  
  • Abrir mercados de exportação para as gemas e pedras preciosas afegãs.

 


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