“Ninguém diga: Desta água não beberei”

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Vice-presidente da AMI e responsável pela administração e coordenação geral da Ação Social em Portugal, Leonor Nobre recorda o início da AMI nesta área, a evolução da abordagem no combate à pobreza e os novos perfis das pessoas que atualmente solicitam apoio à AMI.

 

Quais as razões que motivaram o início da ação social da AMI em Portugal?

Após 10 anos de intervenção no mundo, foi sobretudo o contexto crescente da pobreza na Europa e em Portugal. Lembro-me que enquanto estudei em Bruxelas nunca vi um sem-abrigo ou um mendigo na rua. Quando lá regressei, no final dos anos 80, vi vários nas estações de metro e noutros pontos da cidade. Um fenómeno que se alargou também a Portugal. Havia muita gente que nos escrevia e contactava perguntando: se ajudam pessoas carenciadas em todo o mundo, porque é que não atuam também em Portugal? Decidiu-se então intervir em Portugal com as pessoas sem-abrigo. Na altura, existia o Alto Comissariado da Luta Contra a Pobreza (ACLCP) que era presidido pela Dra. Elza Chambel e que, desde a primeira hora, nos incentivou e apoiou porque existiam poucas instituições a darem apoio aos sem-abrigo.

 

Entretanto, esse apoio foi evoluindo a outras camadas da população?

Houve uma evolução fruto da própria existência dos centros. O primeiro foi a Porta Amiga das Olaias, inaugurado em Dezembro de 1994. Lembro-me de assistir nos primeiros tempos, a um isolamento total das pessoas. Os sem-abrigo comiam e iam-se embora. Não falavam com ninguém, muito menos entre si. Isso impressionou-me. Entretanto, as pessoas que recorriam ao centro foram ganhando confiança com as técnicas sociais e contando as suas necessidades, pedindo ajuda noutros serviços.

Simultaneamente, o ACLCP incentivou-nos a dar outras respostas. Começámos a ter muita procura ao nível do apoio social. Ninguém utilizava o restaurante sem primeiro falar com uma técnica social e isso ajudou-nos a compreender as necessidades e a alargar as respostas. Foi interessante assistir a essa mudança de comportamentos. Do isolamento, as pessoas passaram a ser até um pouco reivindicativas, a terem noção dos seus direitos.

 

É um sinal de integração, essa exigência.

Sem dúvida. O facto de pagarem uma quantia simbólica por alguns serviços, dá-lhes essa autoestima. Estou a pagar um serviço, logo tenho o direito a reclamar.

 

A ação social da AMI iniciou-se com esse registo de apoio a pessoas sem-abrigo mas foi-se alargando…

Sim, com a abertura de novos centros, em Almada, por exemplo. Já não era tanto a população sem-abrigo, mas pessoas que viviam no Bairro do Pica-pau Amarelo, com outro tipo de carências e necessidades. Começámos a alargar o apoio a famílias carenciadas. O que mais motivou as pessoas a recorrerem à AMI foi o facto de existir integração. O centro dá verdadeiro apoio à pessoa e não é apenas uma cantina…

 

Para além dos centros Porta Amiga, a AMI foi alargando os serviços e infraestruturas como os abrigos noturnos e o apoio domiciliário, por exemplo. Como é que surgiram estas valências?

As pessoas iam referindo as suas necessidades. A nossa luta sempre foi o encadeamento de soluções para que a pessoa sem-abrigo tivesse uma casa própria e pudesse gerir a sua vida com autonomia. Assim decidimos criar abrigos em Lisboa e Porto. O primeiro em Lisboa, com o apoio da Câmara Municipal. O simples facto de uma pessoa saber que tem um sítio onde passar a noite predispõe logo para uma atuação diferente no seu dia-a-dia, na procura de emprego. A ideia dos abrigos é essencialmente facilitar a inclusão social pelo emprego.

Com esta evolução dos princípios basilares da AMI em Portugal, fomos sendo solicitados para tantos apoios, que hoje a ação social da AMI toca praticamente todas as necessidades das pessoas que estão excluídas.

Já o apoio domiciliário começou como uma empresa de inserção, criada através do Instituto de Emprego. Na altura, servia apenas refeições ao domicílio. No entanto, considerámos alargar os serviços. Incluímos limpeza e higiene, por exemplo. Avançámos com um projeto que apresentámos junto da Segurança Social. Hoje temos duas carrinhas a circular, uma para as refeições e uma segunda para tratar das questões de higiene.

 

Como é que a AMI tem sentido a crise ao nível dos pedidos de apoio? Tem encontrado novos perfis de pobreza?

Ninguém diga “desta água não beberei”. Num momento de crise como o que estamos a viver, isto é ainda mais notório. Os exemplos são vários. As dependências, o desemprego, a solidão atravessam qualquer classe social. Hoje, muitas pessoas que tinham trabalho, filhos no colégio, faziam viagens ao estrangeiro, enfim, tinham a sua vida organizada, estão a recorrer aos nossos serviços. Basta que um dos cônjuges perca o seu emprego para que tudo se complique.

Existem casos de pessoas que querem ir buscar alimentos aos centros sociais da AMI (Portas Amigas) fora dos horários normais para não serem vistos. Hoje em dia ter um emprego com salário mínimo não quer dizer que não se necessite de ajuda.

A pobreza envergonhada tem aumentado. Uma grande parte das pessoas que recorrem pela primeira vez aos nossos centros faz parte dessa classe média, dessa pobreza envergonhada.


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