O sonho do bem-estar

Alcançar o bem-estar emocional para conquistar novos patamares na vida afetiva, familiar ou profissional transforma-se num desafio de décadas, quando a injustiça social é o sentimento dominante e parece quase intransponível.

Texto: Ana Martins Ventura/AMI | Fotografia: José Ferreira/AMI

Paula Rodrigues conhece cada recanto e rosto do Centro Porta Amiga de Chelas desde que, há cinco anos, encontrou na casa o apoio alimentar e a ajuda para despesas de habitação, depois de ficar desempregada e deixar de conseguir garantir por si o sustento da sua família. A morte do filho, em 2013, trouxe a pior época da sua vida. Desde 2013, “a estratégia para sobreviver ao luto passa pelo apoio psicológico, sem ele é impossível estar bem”. As consultas de psicologia tornaram-se “outro bem essencial”, num longo percurso para alcançar o bem-estar pleno.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o Índice Global de Bem-Estar da população portuguesa é de 45,7%. Subiu mais de 20 pontos percentuais em cerca de duas décadas, mas não o suficiente para que os portugueses tenham um estilo de vida positivo, ou sintam que vivem bem. Dentro deste índice, as relações sociais, o bem-estar subjetivo e económico representam percentagens abaixo dos 50%.
Com especialização em Psicoterapia Sistémica e Familiar, Marta Almeida considera que “o segredo para garantir o bem-estar de pacientes como Paula Rodrigues é escutar a sua história, os seus anseios”. A partir da interligação desses sentimentos começa o trabalho em torno da identificação do bem-estar e do que é necessário fazer para o alcançar.

“O bem-estar e até mesmo a felicidade, apesar de serem conceitos mais dependentes das experiências emocionais de cada um, são ambos ainda associados a algo luxuoso, apenas ao alcance de alguns, dependentes de uma positividade que se vende de forma exacerbada, tornando-a tóxica”, afirma a psicóloga.

Para Marta Almeida, é fundamental mostrar a cada paciente e beneficiário acompanhado no Centro Porta Amiga de Chelas que “existem sempre outros momentos de vida positivos a ser vividos”. Eles representam a esperança, possibilidades, um futuro. Mas também “é importante preparar as pessoas para sobreviverem a momentos mais difíceis”, sendo esse o objetivo da saúde mental”.

A psicóloga Marta Almeida é contra a positividade irreal. Defende a felicidade alcançada com o equilíbrio de momentos bons e momentos de perda.

Quando o sentimento de perda fica ainda mais forte e começa a reviver o luto, Paula Rodrigues encontra nas consultas de psicologia do Centro Porta Amiga de Chelas “o apoio, a conversa necessária para regressar a casa mais tranquila e com mais força”. Um apoio incondicional que a ajudou a “construir uma nova vida”, na qual caminha como considera que o filho gostaria que vivesse, “com coragem e dedicada aos netos”.

Antes, passou por uma experiência de psicologia em grupo, através do Serviço Nacional de Saúde, com a qual não se identificava. A terapia em grupo fazia Paula sentir que “estava a invadir a privacidade das histórias das outras pessoas” e ela mesma “não estava preparada para partilhar a dor” que sentia pela perda recente do filho. “O meu filho nasceu com problemas cardíacos e tinha apenas dezoito anos quando faleceu” recorda, alegando que “mais do que a doença, o que o matou foi a negligência médica durante um procedimento cirúrgico que deveria ter sido feito a outra pessoa”.

“Ultrapassar o que nos empurra para baixo, não raras vezes, representa um ato heroico”

Carolina Diogo, assistente social

Um dia antes de entrar em coma, o filho de Paula foi internado para fazer uma ressonância magnética de rotina. Quando a mãe chegou ao hospital, tinha sido levado não para fazer o exame, mas para o bloco operatório. Depois da cirurgia que não estava programada e que Paula alega ter sido feita por engano, o jovem foi levado para os cuidados intensivos e “nunca mais despertou do que os médicos diziam ser ‘a anestesia ainda a fazer efeito’, quando afinal estava ligado ao suporte artificial de vida já em morte cerebral”.

Durante anos, Paula sentiu que seria impossível voltar a encontrar uma forma de sentir emoções positivas e um sentido na vida. “Não há fórmula para ser feliz, um dia acontece, por momentos, e até acertar com o acompanhamento psicológico certo para ganhar ferramentas e ver outro lado da vida. Tentei desistir muitas vezes”, confessa.

Quando conheceu Paula, a psicóloga Marta Almeida respeitou o seu espaço. “Se a paciente não estava confortável com alguma situação ou não queria falar sobre algo, devia aceitar, porque em situações tão delicadas, como o luto de um filho, a confrontação não é a solução, mas, sim, a compreensão e a empatia”. O passo seguinte centrou-se em identificar o que constituiria o seu bem-estar “sinalizando fatores familiares, profissionais e sociais, onde podem ser incluídas linhas tão diversas como a participação ativa na vida social da comunidade em que vive; ou os impactos de uma pandemia; de uma guerra”.

Transformar a vida, um ato heróico

Carolina Diogo, assistente social, une o bem-estar social e o bem-estar psicológico para mudar vidas.

Situações de vida como a de Paula Rodrigues envolvem um forte sentimento de injustiça para com a vida e uma grande perda de autoestima. É nesses sentimentos que as ferramentas dadas pela psicoterapia vão fazer a diferença, para “ultrapassar o que nos empurra para baixo. Não raras vezes representa um ato heroico”, afirma a assistente social Carolina Diogo.

Para alcançar esse propósito junto dos beneficiários do Centro Porta Amiga de Chelas, a assistente social aposta numa abordagem onde é possível “cruzar o bem-estar social com o bem-estar físico e psicológico, através do acesso a uma alimentação adequada, a condições de higiene e de saúde, acesso ao trabalho, transformação dos relacionamentos interpessoais, tanto a nível familiar, como na amizade”.

O ranking perdido da felicidade portuguesa
O Relatório Anual da Felicidade Mundial indica que os portugueses estão cada vez mais infelizes, tendo a felicidade dos portugueses caído do 34.º lugar no ranking de 2019 para o 56.º, atualmente.
Em 2022, a Universidade Católica de Lisboa já havia realizado um estudo empreendido pelo Observatório da Sociedade Portuguesa, sobre a felicidade nacional, no qual inquiriu 1.001 portugueses e denotou o pessimismo crescente dos portugueses.
Através deste estudo, ao longo dos últimos oito anos, o Observatório da Sociedade Portuguesa tem monitorizado as perceções sobre a vida no país, nomeadamente o sentimento de bem-estar da população, a avaliação da qualidade de vida, o nível de felicidade e a perceção sobre a saúde e segurança.
A maioria dos participantes considerava ter uma qualidade de vida de razoável a muito boa (33,2% afirmam ser razoável, 52.0% boa e 5.9% muito boa). Os resultados podem parecer positivos, mas, quando comparados com resultados obtidos em 2021, os valores são preocupantes. Há uma diminuição em todos os itens que compõem o Índice de Qualidade de Vida, que, em 2022, teve uma variação negativa de 1,6%. As descidas mais acentuadas correspondem aos pontos relacionados com a saúde (“Até que ponto está satisfeito(a) com a sua saúde?”), que teve uma redução de 3,6%, e à qualidade de vida (“Como avalia a sua qualidade de vida?”), que caiu 2,6%.
Em relação à satisfação com a vida, apesar de a maioria dos participantes relatarem que se sentem satisfeitos (69,2%) ou muito satisfeitos (8,3%) com a sua vida em geral, quando comparamos com os resultados obtidos em 2021, existe uma diminuição generalizada. A questão “Se pudesse viver a minha vida de novo, não alteraria praticamente nada” registou o valor mais baixo desde 2016, ano em que este indicador começou a ser medido pelo Observatório da Sociedade Portuguesa. E a Medida Absoluta da Satisfação com a Vida apresenta uma variação negativa de 1,9%.


Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

You may use these HTML tags and attributes:

<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>