“Não vi turistas em Milagres”

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«Não vi turistas em Milagres. Fica longe o Brasil das praias de areia branca e água transparente; longe está o Brasil da aventura da selva.

Na literatura, o Cearense aparece representado, muitas vezes, como o pobre coitado, o miserável, o triste – atravessando a seca e a miséria e ficando tantas vezes pelo caminho. Outras vezes, representam-no como o povão do nordeste, selvagens sem a cultura “superior” das cidades do sul, trocando o samba eclético pelo forró popular.

Durante dois meses, passei os meus dias em Milagres, pequena cidade na fronteira de três estados do nordeste: o interior do interior. Invariavelmente, pelas 17 horas, viam-se as cadeiras de balanço a saírem para o passeio e a instalarem-se à soleira das portas. Nelas se sentavam gentes de todas as idades que, entre cochichos esporádicos, olhavam fixamente o vazio e iam deixando o tempo passar, e passar, e passar. A rua era mais fresca do que a casa e o entretenimento da vida quotidiana era uma fuga ao aborrecimento do dia-a-dia. Nas cadeiras, esperavam o fim do dia, a hora de jantar, a novela da noite, o dia seguinte, a vida seguinte. Que metáfora esta, pensei, para pessoas tão acostumadas a esperar – nunca a esperançar.

Um povo esquecido num deserto de esquecimento – esquecido do poder político, dos roteiros do mundo, dos guias de viagem, dos recursos naturais. Esquecido até da chuva. Esquecidos, assim, encontram formas de preencher a espera e de fugir à “desespera”: a rua, a música, o álcool, deus, a comida, a família, as crianças sempre a nascer. À soleira da porta. Esperam e perseveram. Pele espessa como carapaça de tartaruga centenária, rugas do rosto como caminhos de terra poeira, mãos como catos de espinhos erodidos pela roça, olhos de pedra opaca, língua de lagarto, sangue que mosquitos trocam entre si.

E esperam. À soleira da porta esperam, crescendo para árvores, criando raízes nos poços profundos, buscando a água que tarda em vir. Habituados a esperar, nunca a esperançar. Séculos de pobreza gritam que o presente é seco. A igreja promete que o futuro será abundante. Este futuro na terra parece tão desolado, que é difícil acreditar que o além não seja maravilhoso – lá, o sertanejo será resplendor.

É aqui que entram associações como a ACOM (Associação Comunitária de Milagres) e assim se percebe a sua importância. Mostrando às pessoas que da luta se constrói o sonho e que do sonho se constrói a esperança. Lá, onde sempre existiu perseverança. Que o futuro melhor é possível já neste mundo, mas requer tanto esforço quanto a aragem da terra em ano de seca. Que quem espera nem sempre alcança, mas quem se levanta e, esperançando, desenha o seu caminho, chega mais perto. Mostrando que, nos desertos do esquecimento, há vozes que se erguem – e essas são as vozes da terra. Que a esperança é tão vital quanto a chuva e que as suas ferramentas não são a carroça, mas a educação e a saúde.»

Francisca Matos,
Voluntária da AMI no Brasil


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