Entrevista a Isabel Fernandes – Coordenadora da Missão de Emergência da AMI em Moçambique

Foto equipa Moçambique

12 de Julho de 2019

A tua relação com a AMI começou com esta missão ou já existia alguma ligação entre ti e o trabalho desenvolvido pela Fundação?

A minha relação com a AMI começou em 2016, se bem que para mim começou quando era pequena e assistia às campanhas da AMI na televisão. De alguma forma já tinha uma ligação com esta Fundação, sempre disse a mim mesma que um dia iria partir em missão com a AMI. Em 2016, surgiu a oportunidade de me juntar a um projeto de Desenvolvimento na Guiné-Bissau, no âmbito da saúde materno-infantil. Em Novembro de 2016 parti em missão até 2018, estive lá cerca de um ano e meio.

Quando surgiu a possibilidade de ires na missão de emergência para Moçambique, aceitaste logo este desafio?

Nem sequer hesitei porque já estava em Moçambique quando o ciclone aconteceu. No início do ano estava no sul do país, na província de Gaza, na cidade do Chibuto. Na altura, quando aconteceu o ciclone era impossível ficar indiferente, pela ligação que tinha com a AMI, por ter feito o projeto na Guiné-Bissau e ter apoiado a organização noutras causas e de forma voluntária.

Quando chegaste à cidade da Beira qual foi o primeiro impacto que sentiste?

Fazendo um retrato visual, parecia que estava no meio de um filme. Tudo aquilo que eu ouvi e vi em filmes acerca de missões humanitárias de emergência tinha-se tornado uma realidade para mim. Quando o avião sobrevoou a cidade da Beira e o piloto anunciou “aqui do vosso lado direito está Búzi” fez-se um enorme silêncio. Acredito que a maior parte das pessoas estavam naquele avião por causa do que tinha acontecido com o ciclone Idai (para prestar apoio à população, procurar os seus familiares, reaver bens). Tudo aquilo visto de cima foi uma imagem aterradora. O primeiro impacto que senti quando saí do avião foi de olhar à minha volta e ver dezenas de helicópteros, de entrar no aeroporto e ver coletes de um lado para o outro, uma azáfama incrível.

Pensei mesmo que estava no meio de um filme. Quando se parte para este tipo de missões nunca se sabe o que vai se encontrar. É mesmo agarrar o desafio pela vontade de querer ajudar de alguma forma, mas nunca temos noção da realidade que vamos encontrar no momento.

Em termos de operação, quais foram os primeiros passos e abordagens? A princípio houve uma decisão de apoio alimentar por parte da AMI, descreve-me um pouco esta ação inicial desenvolvida.

As necessidades básicas de qualquer ser humano, tendo em conta a pirâmide de Maslow, apontam sempre para aquilo que é fundamental à sobrevivência, como a alimentação. Estas pessoas viram as suas casas desfeitas, ficaram sem as suas machambas (horta onde se produz bens alimentares), pois ficaram inundadas e por isso ficaram sem a possibilidade de recolher o seu sustento, para além de outras consequências que nós já sabemos que aconteceram.

Tendo a AMI uma ligação histórica com uma Congregação de Irmãs na Beira, a Congregação foi contactada no sentido de perceber como é que elas tinham vivido o ciclone e como é que se encontrava o orfanato que elas tutelam. Surgiu então a necessidade de apoiarmos a nível alimentar as comunidades que circundam a Congregação de Irmãs e mesmo o orfanato. Em Maputo, foi comprado todo o material necessário, o que representa uma mais valia na contribuição para a economia local, que bem precisa. Esta é uma questão crucial: os alimentos existiam no próprio país, não foi preciso virem alimentos do exterior, de Portugal ou de outros países. O necessário mesmo é que haja financiamento para que estes bens sejam comprados localmente e é necessário garantir que estes chegam ao terreno, não é só comprar. Essa é a mais valia da atuação da AMI, fazer todo o acompanhamento no decorrer do processo e garantir a entrega efetiva dos kits alimentares às famílias. O que fizemos, juntamente com as irmãs, foi entregar 260 kits alimentares a agregados familiares da região. Estes agregados foram selecionados pelos responsáveis dos bairros, ou seja, pessoas que teriam à partida mais necessidade de acesso a bens alimentares foram convocadas para irem receber os kits à Congregação. Foi uma operação muito estruturada da parte da AMI, isto porque vimos muitas doações no terreno, muitas entregas, o que criava na maioria dos casos um grande alvoroço. Neste aspeto, foi uma excelente organização porque optámos por fazer a distribuição de forma faseada e não todos à mesma hora. As pessoas vinham receber os kits, ficavam muito felizes e assinavam um comprovativo do que tinham recebido (muitas pessoas pegavam na caneta pela primeira vez para fazer a sua assinatura).

Ou seja, existe esse compromisso entre a Fundação AMI, o parceiro e o beneficiário. Este vínculo é muito importante…

Sim, este vínculo é fundamental para que as pessoas reconheçam a ajuda e a valorizem, não é só o ato de recolha, mas de entrega dos kits e acompanhamento das famílias.

Essa foi considerada a primeira fase da missão…

Sim e não, porque isto foi uma iniciativa que surgiu em paralelo. O primeiro passo que teria de acontecer era a AMI ser reconhecida localmente para podermos fazer a nossa atuação de emergência, senão tudo seria muito desestruturado e poderia ter um impacto negativo. Foi-nos então atribuído o local de intervenção da AMI, o Centro de Saúde da Manga Nhangonjo, que cobre dois bairros da cidade da Manga, o bairro nº 13 e o bairro nº 14. Aí sim conseguimos colocar a nossa equipa no ativo no Centro de Saúde.

Nos primeiros dias tivemos de perceber o que é que estava a acontecer, inclusive o funcionamento do próprio Centro de Saúde para que nenhum procedimento fosse imposto. O nosso trabalho é sempre feito em parceria. Os primeiros dias foram dedicados a conhecer o trabalho dos técnicos locais, perceber as necessidades fundamentais, não só do Centro de Saúde da Manga, mas também de outras estruturas, com especial foco nos casos de saúde que estavam a surgir, resultante do ciclone Idai.

Doenças como diarreias, cólera e malária já eram expectáveis de surgir após este tipo de evento climático e nesta região em particular.

Percebemos também que as pessoas que estavam a ser socorridas por casos de diarreia no posto de socorro não usufruíam de condições mínimas. O Serviço de Urgência do Centro de Saúde tinha meia dúzia de camas e quando os carros chegavam, traziam pessoas às dezenas. Isto obrigava, por exemplo, que cada cama fosse ocupada por duas ou três crianças.

Foi então tomada a decisão de enviar de Portugal e montar pela equipa o Hospital de Campanha. Um dos grandes sucessos desta missão é que não foi uma missão feita apenas em Moçambique, mas também com a equipa de retaguarda da AMI em Portugal. Trabalhou-se muito em conjunto.

Tudo isto implicou muita gestão do dia–a-dia. Implicou também uma presença em Maputo para se conseguir trazer as estruturas e materiais para a Beira.

Uma equipa não se faz de uma ou duas pessoas, uma equipa faz-se com muita gente com o mesmo propósito, com a mesma missão. Também contámos com o apoio de uma equipa de Voluntários portugueses que estavam no terreno e se disponibilizaram para nos ajudar. Foi uma grande ajuda para conseguirmos pôr de pé o Hospital de Campanha e termos condições para combater essencialmente nas doenças diarreicas nas comunidades 13 e 14.

Efetivamente o que vimos é que também pela prestação de cuidados que a nossa equipa dava, pela atenção e pelo amor (amor é a palavra chave de toda a missão), muitos dos casos que nos chegavam vinham de outros bairros. Já tinham ouvido falar que ali em Manga Nhaconjo havia o novo Hospital de Campanha. Houve pessoas que foram só conhecer a infraestrutura e isso foi muito bom porque aproximou as pessoas da unidade sanitária.

Então, quer dizer que a estrutura do Hospital de Campanha ultrapassou muito as expetativas.

Sim, mas também penso que a equipa teve um papel essencial, se só tivéssemos instalado o Hospital de Campanha, se calhar não haveria tanta procura e reconhecimento por parte das populações locais. Era um espaço da AMI, dentro do Centro de Saúde, que despertou curiosidade por ser uma infraestrutura nova, pelo facto de lá estarem pessoas novas, com expatriados e pessoal local. Acima de tudo, e do ponto de vista médico, o Hospital de Campanha permitiu garantir que o isolamento de pacientes com casos de cólera, o que é muito importante para evitar a propagação. Se não se tivesse implementado o Hospital de Campanha, o número de casos poderia ter sido muito maior.

Após a missão de emergência, passou-se à implementação projeto de pós-emergência, fala-me desta segunda fase.

Quando estávamos no pico da missão de emergência atendíamos uma média de 100 casos por dia, o que são muitos casos para uma equipa local e expatriada com poucos elementos. O segundo mês permitiu-nos ver uma evolução dos casos em sentido decrescente e permitiu ainda fazer um maior acompanhamento on job à nossa equipa, bem como fazer sessões de reciclagem sobre temas que são muito importantes neste tipo de situações.

O que nós quisemos garantir até à nossa saída do Hospital de Campanha foi que, em caso de novo ciclone ou outro evento idêntico, a equipa que está no Centro de Saúde de Manga – Nhaconjo tivesse todas as ferramentas necessárias para conseguir dar uma resposta eficaz e eficiente ao acontecimento. Caso contrário iriam estar sempre dependentes de uma ajuda externa, quando na verdade são eles, eles é que são os locais, que têm muito mais conhecimento de algumas doenças do que nós porque são eles que têm contacto no dia-a-dia. Só têm de saber gerir e coordenar uma série de informações, mesmo a nível dos clusters. Havia procedimentos que eles desconheciam e é muito importante essa formação e a autonomia dos profissionais locais.

Moçambique é um país com graves carências na área da saúde. O ciclone veio agravar essa situação. O que nós sabemos é que nas duas comunidades onde atuámos os números de diarreias já eram altos, por várias razões: porque os poços estão infetados, porque não há comportamentos ajustados da própria comunidade em termos de limpeza, higiene etc. Tínhamos consciência de que se saíssemos e nada fosse feito junto das comunidades, a situação iria continuar. Procurámos assim a possibilidade de fazermos uma fase pós-emergência do projeto dentro das comunidades e de trabalhar com as pessoas. Para este efeito identificámos algumas organizações e associações locais e encontrou-se um parceiro local que se prontificou a implementar um projeto junto das comunidades dos bairros 13 e 14. O objetivo do projeto é diminuir os casos com potencial epidémico após o ciclone Idai.

É um projeto muito interessante porque tem várias atividades que contam com a participação e envolvimento das comunidades.


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