Um Natal inesquecível… no Ruanda

Que bela tarde de sol! Sentada no alegrete da minha casa, tv, rádio e internet desligadas, contemplo os montes cobertos pelo verde vibrante, brilhante, banhado de sol, como só no Alentejo acontece.

As árvores, uma aqui outra ali, deixam adivinhar as azinheiras pelo tronco cinzento e os sobreiros pelos troncos de diferentes castanhos, mais escuros, aqueles cuja cortiça foi tirada há anos e os castanhos terra, cintilantes, revelam a extração do casaco de cortiça, protetor do frio do inverno e do calor excessivo do verão. Vislumbro ainda alguns eucaliptos antigos e os pinheiros trazidos mais recentemente, pelo vizinho do lado.

A temperatura está amena, como se fosse primavera, mas estamos em dezembro, é domingo, faltam precisamente catorze dias para o Natal e o meu pensamento voa para um dos natais mais quentes e ao mesmo tempo, mais frios da minha vida. O primeiro passado sem a minha família por perto, e o último do meu pai entre nós!

Um natal tropical, no Rwanda, quando participei numa das missões de emergência da AMI – Assistência Médica Internacional. Em meados de dezembro de 1996, partimos de Lisboa, rumo a Kigali, a capital do Rwanda. A viagem para lá foi feita num avião que mais parecia ter saído diretamente da segunda guerra mundial.

Saímos de Lisboa à noite, fizemos escala no Cairo para abastecer e de madrugada sobrevoámos o rio Nilo. Qual pista entre as areias do deserto, até o perdermos de vista, entre os diferentes matizes verdejantes, a caminho do verde luxuriante, do Rwanda, em plena África Central. Lindo!

O nosso destino era Shyra, a cerca de 120 km da capital. Atravessámos meio país, em jipes todo o terreno, através de estradas de montanha. Tínhamos como objetivo recuperar um hospital e devolver os cuidados de saúde possíveis, à população local e aos refugiados que voltavam para as suas casas, após o genocídio de 1994.

O Rwanda tem uma área semelhante à do Alentejo, mas tem muito mais população, na altura eram seis milhões de pessoas. Mesmo no meio de nenhures havia pessoas a circular a pé nas estradas, tanto num sentido como no outro.

Chegámos a Shyra no dia vinte de dezembro, já depois da hora do recolher obrigatório. Estava uma noite escuríssima, não havia eletricidade, … Shyra parecia um lugar fantasma. Cruzámo-nos apenas com alguns militares que patrulhavam a zona e nos acompanharam à casa que nos tinha sido destinada.

Era a casa do Sr. Bispo, abandonada abruptamente aquando dos massacres entre Totsies e Hutus. Estava razoavelmente limpa e até tinha água canalizada, fria é certo, mas quem precisa de água quente a sair do chuveiro num clima daqueles? Eletricidade também não tinha, mas foi só até o Eduardo pôr o gerador a funcionar.

No dia seguinte, quando de manhã nos dirigimos ao hospital, fomos surpreendidos pela beleza da paisagem, indescritível, estávamos no cume de uma montanha, rodeada por outras montanhas, vales a pique e rios lá em baixo, quais estradas movimentadas por canoas, pejadas de gente com as suas vestes tão coloridas, que se conseguiam avistar lá do alto. Como podiam ter acontecido, num local daqueles, as atrocidades relatadas pela imprensa mundial?

No caminho percorrido diariamente, entre a casa e o hospital, havia uma igreja, cristã, anglicana, com paredes de tijolos vermelhos, enorme, imponente! Era véspera de Natal e o pastor convidou-nos a participar na missa de Natal. A Nazaré, querida colega de equipa, sempre com música no coração, levou um órgão e logo se prontificou a ensaiarnos para cantarmos em conjunto a canção de Natal, conhecida por todos, “Silence nigth” ou “Noite feliz”, em português.

Uma estrofe em quino-rwandes, a língua local, uma em português, uma em francês, língua falada por muitos e outra em inglês, falado também por alguns profissionais locais. Naquela véspera de natal, por todo o lado ecoava a “Noite feliz”: nas enfermarias, nas salas de consulta, na maternidade, nos corredores e salas de espera do hospital de Shyra, cada um ensaiava a canção na respetiva língua. Ao final do dia, apesar do cansaço físico, devido às limpezas, pinturas e arrumações, para podermos garantir um mínimo de assépsia no hospital, apesar do desgaste psicológico e o medo, relacionados com as atrocidades que adivinhávamos continuarem a acontecer pela calada da noite, relatadas quer pelos colegas locais, quer pelos doentes; voltávamos a ensaiar em casa, com a Nazaré, o seu órgão e os jornalistas portugueses que dividiam a casa connosco.

Estávamos empenhadíssimos em fazer boa figura, mas tínhamos lá alguns desafinadores, que exasperavam a Nazaré até ao limite.

Finalmente era Natal, dirigimo-nos à igreja, o mais aprumadinhos possível, prontíssimos para participar quer na missa, quer no coro. A igreja estava a abarrotar, muito calor, incluindo o humano. Quando entoámos o “Silence nigth”, em uníssono, … foi uma experiência avassaladora, incrível, inesquecível!

Seguiu-se um silêncio arrepiante, difícil de quebrar, em que apenas olhávamos uns para os outros, perfeitamente conscientes do momento espantoso que acabáramos de viver!

Era difícil acreditar que todos nós, divididos por nacionalidades, etnias, línguas, credos e crenças, tínhamos conseguido criar aquele instante, … sublime!

Posteriormente, concluímos que este momento, facilitou muito a nossa integração com as equipas locais e a população. E contribuiu fortemente para o reforço do espírito de equipa e a partilha de saberes.

Talvez tenha sido durante esta missão que eu interiorizei, o quão indispensável é saber ouvir, para o desenvolvimento de cuidados de saúde adequados e excelentes.

Aprendi muito por lá, inclusivamente a dar maior importância ao Natal e à inspiração que ele nos dá, para nos superarmos enquanto seres humanos geradores de momentos mágicos, para nós e para os outros.

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Autora: Mª Duarte Moreira Alexandre (Enfermeira)

Unidade: ULSLA /Unidade de Saúde Pública Alentejo Litoral