“Que a casa seja minha, para sempre”

Órfãos, meninos de rua nos bandos dos anos 70 e 80, explorados por traficantes de droga, escravizados em falsas oportunidades de emprego, não aceitam a rua como destino final e lutam pela casa própria.

Comandante de um canto partilhado com dois companheiros de rua, Paulo adia planos de vida “enquanto não tiverem todos lugar para ir, talvez para casas”. De descaso, “basta a indiferença de quem passa pelas tendas”, alinhadas à beira da estrada. Há alguns meses, Paulo “tinha mil pessoas à frente, na lista de acesso à habitação social, agora tem 400”. Enquanto vigia a panela com o almoço ao lume ironiza: “subi uns lugares”. Vale a pena esperar, porque “a vida encareceu, os quartos alugados são sol de pouca dura e quando sair da rua, que a casa seja minha para sempre”.

Com 52 anos, Paulo carrega quarenta de rua, albergues e abrigos, quartos alugados e regressos à rua. Ciclo repetido desde os 14 anos, quando fugiu da instituição onde estava. Em 2014, quando conheceu a equipa de rua da AMI, em Lisboa, “vivia num contentor, era quase uma casa”.

Antes desse tempo, quando ainda tinha família, “aos 10 anos já fazia biscates na construção civil, era assim a vida dos putos de Lisboa”, na década de 1980. Otimista, mantém a esperança, “só quando fechar os olhos é que acaba tudo”.

Trabalhou “em tudo” e garante que só não sabe “fazer dinheiro”. Os dias não têm corrido mal, com algum trabalho na construção civil e vendas na Feira da Ladra. O dinheiro que consegue é partilhado com os outros membros da comunidade, para comprar comida, cigarros e, às vezes, uma bebida. Outras drogas não têm lugar no canto partilhado e “quem chega com ‘branca’, pastilhas, o que for, aprende logo qual é o lugar das drogas, atiradas para debaixo dos carros”.

“Ninguém está na rua porque gosta, está-se na rua porque não há lugar onde se caiba”

Assume-se “um revoltado contra a burrice alheia”. Cresceu sem família, mas, “não fossem os vícios, a vida seria diferente, que ninguém está na rua porque gosta, está-se na rua porque não há lugar onde se caiba”. Os abrigos da AMI, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Cáritas ou Exército de Salvação não aceitam o consumo de drogas nas instalações. Apenas o Centro de Acolhimento Sem-Abrigo Quartel de Santa Bárbara aceita o consumo assistido.

Flávia Ricardo, assistente social da equipa de rua da AMI, reconhece que “o abrigo de Santa Bárbara dá oportunidade a quem só podia ficar na rua. Mas pode deixar constrangido quem não consome”. Em Santa Bárbara há também uma camarata masculina e outra feminina, assim como um espaço apenas para casais e aceitam-se animais de companhia.

Recentemente, Filipe Anacoreta Correia, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, destacou que a capacidade de acolhimento para pessoas sem-abrigo aumentou de 760, em 2020, para 977, em 2022. A previsão para 2023, é de 1.146 lugares.

Entre a rua e o tempo contado que se pode permanecer num albergue ou na camarata de um abrigo, “lutar pela casa própria e emprego continua a ser o objetivo máximo de quem quer sair da rua”, garante Flávia Ricardo.

Entre 2020 e 2021, as equipas sociais da AMI do Abrigo da Graça, Abrigo do Porto e Casa do Lago ajudaram 59 pessoas a sair da rua, a maioria para a solução “quarto alugado”, conseguido através do contacto direto entre a AMI e arrendatários. Apenas três beneficiários obtiveram acesso a habitação social e dois ao programa de habitação apoiada “Housing First”, gerido pela Segurança Social.

Na sonhada casa com medo da renda

Com drogas nos bolsos e várias tentativas de realojamento, Fernando conhece bem o caminho da rua. Conquistou a casa própria nas vésperas dos 60 anos, através da ajuda da Santa Casa da Misericórdia, da AMI e da CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária.

O passado está gravado num livro, onde conta quando e como chega o momento de dizer basta à rua. O presente é vivido entre os acordes da guitarra e o canto do rock, de onde tira algum sustento. Do futuro, gosta “do facto de ter um”, sem negar que, “o maior medo é quando o programa de apoio à habitação acabar, ter de voltar à rua, porque ninguém pode pagar uma renda de 700,00 euros”.

Por agora, Fernando tem casa certa e é entre as suas paredes que apazigua as memórias do tempo como miúdo de bando, nas ruas de Setúbal e Lisboa. Aos oito anos vivia com o pai, uma tia e os avós, numa barraca de madeira e chapa, cenário que descreve como “comum em Portugal, no final dos anos 60”. Quando o pai e os avós morreram foi destinado à Casa do Gaiato até fugir.

Andou “perdido pelas ruas de Setúbal” e aos doze anos decidiu partir para Lisboa, onde foi acolhido por outro bando de meninos de rua. Passou a infância e a adolescência entre a rua e instituições, como a antiga Tutoria de Menores, em Lisboa, e o Reformatório de São Fiel, em Castelo Branco. Tornou-se mestre de furtos, usado no tráfico e empurrado para o consumo de droga, numa vida onde os amigos eram traficantes e prostitutas.

Adulto, cumpriu o serviço militar e trabalhou em feiras, onde conheceu a esposa. Chegou a ter “uma vida confortável”, mas as drogas deitaram tudo a perder. “Depois de vinte e tal anos a consumir todas as substâncias possíveis é difícil mudar”, conta Fernando assumindo que “adorava drogas”. Elas davam-lhe “um bom discurso e muitos amigos”. Uma ilusão: “quando chegava a noite os amigos regressavam a casa, eu ficava na rua, sozinho”.

Da rua, Antero também garante que “não se guardam amigos, só interesses, quando há dinheiro e droga no bolso”.

Escravos sob as bancas de feira

A morte da filha, num acidente ferroviário, trouxe Antero de volta a Portugal, em 2007, depois de décadas emigrado em Espanha. Com 49 anos, sem trabalho, sem casa e de laços familiares rompidos, só pensava “vim para Portugal para viver na rua”.

Aos 64 anos, a saúde já não é o que era e recorda “na rua, por conta própria, sem ajuda, até a trabalho escravo está-se sujeito”.

Em Espanha a vida era boa, chegava a ganhar 3.500,00 euros num mês. Trabalhava em qualquer coisa, a vindimar, na construção civil, ou camionagem. É para Espanha que gostava de voltar porque, diz, “aqui [em Portugal] não dá nada”. Quando estava emigrado “trabalhava muitas horas, mas, ganhava-as”.

De Espanha só restam as recordações, a vida está somente ligada ao Porto, onde, o apoio do Centro Porta Amiga, ajuda Antero a manter condições de vida dignas.

Depois da perda da filha e do regresso a Portugal, uma proposta de trabalho deu a Antero a ilusão de ter conseguido uma casa, se era itinerante, pouco importava. “Nas pistas [de carrinhos de choque] tínhamos onde dormir e comer, mas o trabalho era quase escravo”, recorda. “Na feira, só pagavam ao fim da temporada, os empregados eram mantidos com dormida, comida e gorjetas”. No fim do verão de 2007, Antero deixou a feira, no Sul, para rumar ao Porto e cruzou caminhos com a AMI.

Há seis anos que Antero aluga um quarto por 200,00 euros, com uma pensão de 400,00 euros e medo, porque “chegará o dia em que o senhorio vai aumentar a renda ou dizer que é preciso sair”.

Voltar para a rua não é alternativa “as pensões têm de chegar”. Depois de um abrigo, “o quarto é, finalmente, o mais próximo da cama e casa própria, mas, não se deixa de temer o regresso à rua, ao mínimo incidente que aconteça neste ciclo”, conta o ex-camionista.

A fuga do trabalho escravo rumo à AMI também foi vivida por António. “Mesmo sem ler, nem escrever”, considerava-se “um sabido menino do Porto”, criado na ribeira, entre mergulhos da Ponte D. Luís. Em 2012, caiu “na rede das feiras” depois de se divorciar, e de ter perdido a casa e a empresa de turismo para o álcool.

Na rua, um amigo apresentou-lhe “a patroa, de Barcelos” e António seguiu caminho. Nos primeiros tempos “recebia 30,00 euros por dia e tinha dormida e comida garantidas na feira. Depois, “a patroa” começou a pagar só 10,00 euros, até deixar de pagar. António “trabalhava a troco de comida e dormida, muitas vezes debaixo da banca”. Andava por Viana do Castelo quando fugiu. De regresso ao Porto, ora alugava um quarto nas pensões da D. Glorinha, na Rua do Sol, ora dormia na rua, até a filha o levar à AMI.

Nos últimos anos, o Abrigo do Porto da AMI tornou-se a casa, que partilha com mais 26 homens. Aos 60 anos é responsável pela limpeza e manutenção de espaços na SAOM – Serviços de Assistência Organizações de Maria, instituição humanitária, também dedicada à reinserção social, com serviços de centro de dia, apoio domiciliário, refeições, lavandaria, cabeleireiro, enfermagem, equipas de rua e formações. “O tempo é quase todo dedicado ao trabalho, mas, vale a pena, porque é reconhecido”, afirma António.

Está quase no tempo de ir para a sua casa, com uma renda de 300,00 a 400,00 euros. Tem medo de voltar à rua, porque, “a renda é alta e a habitação social demora a chegar”. Mas, é a oportunidade de “ser novamente independente, reconstruir rotinas, fazer o jantar, ou até ter uma companhia, ser feliz”, à sua maneira. “O maior obstáculo são as rendas elevadas”, desabafa António.


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