Quatro paredes com vista para a rua. Uma história de vida!

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M. foi encaminhado para a AMI por uma equipa de rua que ia cessar funções e que o descreveu como um beneficiário muito resistente à intervenção e indisponível para recorrer a apoios formais, tendo a muito custo feito o requerimento para receber o RSI, desvalorizando o apoio e considerando-o quase como um favor que fazia à técnica que estava a gerir o seu caso. Passava os dias a arrumar carros numa zona central de Lisboa, onde dividia o turno diurno com outro colega, e encarregava-se de outros serviços, desde a compra e venda de mercadoria, a estafeta em negócios de compra e venda de estupefacientes para turistas. Vivia numa cave (que outrora teria sido um prédio, agora demolido) sem eletricidade ou água potável, com 2 animais de companhia, e onde só ia à noite, longe dos olhares de qualquer vizinho para ninguém saber que lá estava, e onde ficava, à luz de velas, pois gostava de ficar a ler livros, jornais ou até a navegar na internet. Explicava que era a única forma de tornar tudo suportável, não se desligando da atualidade e cultivando-se, mas fazia ao mesmo tempo uso e abuso de álcool e haxixe, dependências que mantinha e das quais falava abertamente.

A sua infância não fora feliz. Vivia num espaço com poucas condições de salubridade, sem água canalizada, e sofria maus tratos por parte do pai. A primeira vez porque deixou cair uma garrafa de vinho, e a última porque reprovou no 7.º ano, sendo que o pai o enviou para Lisboa para trabalhar e viver com o avô. Trabalhou em várias áreas, desde as limpezas à construção civil e como tipógrafo, e conta ter chegado a tirar um curso no centro de emprego de informática, quando já estava a viver na rua, sem ninguém ter desconfiado da sua condição.

De duas relações diferentes resultaram duas filhas, mas a dependência da heroína nunca o deixou autonomizar-se apesar de ter conseguido manter um emprego e uma casa com o seu ordenado.

Partilhou que, um dia, decidiu pôr cobro à vida de dependências que levava e integrou uma comunidade terapêutica onde recuperou e onde conheceu a futura companheira com quem estabilizou e viveu 5 anos, mas a morte desta desorganizou-o de tal forma e fê-lo sentir-se tão desamparado pelo estado social e instituições que decidiu viver à margem de tudo com os seus “negócios” e as suas rotinas.

Ainda fez um percurso formativo que lhe deu equivalência ao 9º ano e posteriormente um outro de informática que lhe daria equivalência ao 12º ano, vivendo com o dinheiro da bolsa de formação e alugando um pequeno quarto, mas à semelhança de muitas pessoas que acompanhamos, o aumento repentino da renda deixou-o irremediavelmente longe de uma habitação para si e para os seus animais.

Manteve-se o acompanhamento a este beneficiário e foi renovado o seu contrato de RSI, com muita resistência a todas as propostas de trabalho, formação ou ocupacionais, por já terem sido tentadas e falhadas, ou por as suas rotinas e “negócios” serem mais proveitosos. Porém, tinha um objetivo final em mente, a melhoria da sua situação de habitabilidade, pois tinha consciência que vivia em condições muito precárias. Com duas portas a fazer de chão por cima de uma pilha de lixo, e um constante sentimento de insegurança, sentia-se merecedor do acesso a um espaço com dignidade, embora o conformismo em relação ao futuro reforçasse a ideia de permanecer lá.

O momento de maior desorganização foi ao mesmo tempo gerador de mudança, quando o local onde trabalhava foi alvo de obras de construção de um jardim. A partir desse momento, com o apoio da SCML, começamos a apoiar o M. nas refeições no Centro Porta Amiga das Olaias, passando a frequentar o nosso espaço e estreitando a relação de gestão de caso de um acompanhamento pontual, para um acompanhamento formal, e para a delineação de um plano.

Foi um percurso demorado, feito de avanços e recuos, com muitos atendimentos formais em gabinete, mas muitos mais na rua, em proximidade e com flexibilidade, e a certeza que a meta de uma habitação digna para um beneficiário com este percurso em quase todas as respostas formais que existem teria de ter uma abordagem diferente das que já tinha experimentado.

Foi feito o encaminhamento para uma resposta de Housing First, gerida por uma instituição parceira, adaptada a pessoas com historial de consumos, certos de que a avaliação e a exposição do caso encaixaria dentro dos critérios, tendo sido delineado este plano em conjunto com o M, que sempre desconfiou do resultado final, pois saltava todas aquelas etapas que já tinham falhado anteriormente, mas que aceitou e foi interiorizando ao longo do processo que tinha de fazer mudanças e cedências, uma delas envolvendo a doação da sua gata, habituada a passar o dia na rua e que nunca se iria adaptar à sua nova casa.

Foi um processo longo, mas ao fim de 5 meses após a candidatura, M. recebeu a chave de casa, ciente de que o acompanhamento seria regular e feito por novos colegas de outra instituição com os quais fizemos uma nova passagem de caso, que lhe deu também uma nova perspetiva sobre o sistema de proteção social.

Contou que na primeira noite festejou, riu sozinho com a sua cadela sem saber muito bem qual o motivo, estranhou estar agora entre quatro paredes num primeiro andar com perspetiva para a rua, e dormiu sem se preocupar se alguém ia entrar a meio da noite…


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