“Quase enfermeiros” nas terras dos dez centros de saúde

Muitas mulheres telefonam para a sede da AMI, em Bolama, a perguntar a Mussa Baió e Mamadú Sambú coisas sobre menstruação, gravidez precoce ou paludismo.

Mamadú Sambú não viajou pelo mundo, como desejava aos quinze anos, e Mussa Baió não foi para a universidade em Portugal. “A vida muda os sonhos dos jovens”, dizem os dois guineenses que, “por acaso”, se tornaram “quase enfermeiros”. Título conquistado na luta contra maldições, silêncios forçados, violações e HIV.

Mussa começou a trabalhar com a AMI em 2014, como agente de saúde comunitária. De tabanca em tabanca levou informação sobre saúde sexual e reprodutiva e recolheu testemunhos. Hoje, é um dos elos da AMI, entre Bolama e Lisboa, coordenador local do projeto “Papia Ku Mi”. Ao seu lado, na sede da instituição, em Bolama, Mamadú, com 60 anos, representa a primeira geração da missão internacional, “orgulhoso dos dez centros de saúde que abriram o caminho”.

Agricultor, carpinteiro, pescador e caçador, além de pedreiro, no tempo que lhe sobrava, Mamadú “fazia voluntariado numa obra, quando o presidente da AMI apareceu e perguntou o que estava a construir”. Era um centro de saúde. Para acabar, faltavam portas, cimento e tinta. “E se a AMI comprasse o que faltava, quem é que construía?”

Depois de Buba, o homem do tempo infindável foi desafiado a seguir para Wato Fula, Madina, Casabopa, Gã-Bacar, Bercolom, Ilha das Galinhas, Amitite, Ambancana, Ancano, “numa aventura que durou até 2008”.

Com dez centros de saúde a funcionar a equipa médica identificou focos epidémicos de diarreia, paludismo e doenças sexualmente transmissíveis. Além dos casos de mutilação genital, violação e gravidez precoce, dando-se os primeiros passos para criar o projeto “Papia Ku Mi”.

Intermediário entre as tabancas e a AMI, porque nas pequenas comunidades a maioria as pessoas fala crioulo, Mamadú “estava com a equipa médica para ajudar a comunicar com todos”.

Nesse tempo, através do contacto com as tabancas, Mamadú soube que “homens mais velhos prometiam às meninas vinho de palmeira na floresta ou na praia e depois utilizavam as meninas para ter relações sexuais”. Denunciou tudo à AMI e pensa que “talvez tenha conseguido eliminar 80% dessas práticas nefastas”.

No combate ao paludismo explicou às populações a importância de limparem as latrinas, o lixo e o mato ao redor das casas, para evitar a acumulação de água parada e contaminada, “causa de moscas e mosquitos, transmissores do paludismo”. Ele próprio, limpou o lixo e o mato dos seus terrenos. Ajudou ainda a purificar a água de poços contaminados e a construir novos, em aldeias onde as pessoas consumiam água de lagoas, partilhadas com animais.

Depois do paludismo, era preciso alimentarem-se de forma saudável, para combater outra doença, a anemia. “No hospital começaram a explicar que deviam fazer lavouras com mandioca, espinafres, plantar também pequenos pomares com laranjeiras, abacateiros” e Mamadú não baixou os braços, fez da sua lavoura um exemplo.

Com o que aprendeu, criou onze filhos saudáveis que, “quando tiverem acabado a universidade vão formar uma equipa igual à que a AMI enviou para Bolama em 2005, com médico, enfermeiro, sociólogo e agricultor”, sonha Mamadú.

“Chegar aqui foi uma grande conquista familiar”, depois de perder o pai aos quinze anos e assumir o sustento de trinta e dois familiares. Recorda o dia em que “os homens grandes da terra chegaram e disseram: tu és o primeiro filho e tens de tomar conta da família”. Chorou, quis fugir. Ficou. “Tinha medo da macumba que os homens faziam”.

Mais do que maldições, agora teme a partida definitiva da AMI, pois “nesse dia Bolama voltará a viver como antes”. No futuro, tal como Mussa, “gostava de trabalhar mais com a AMI, num projeto onde pudesse continuar a aplicar o conhecimento adquirido”.

Mussa Baió (46 anos) e Mustafá Sambú (60 anos) desejam que a AMI permaneça em Bolama a trabalhar com saúde comunitária

Ser parte da mudança

De 2014 a 2022, Mussa assistiu a uma “grande mudança de Bolama, com o “Papia Ku Mi”, e teme que tudo fique perdido”.

De agente de saúde comunitária, passou a coordenador local do projeto. É “quase um enfermeiro”, diz entre sorrisos. “Muitas mulheres telefonam a perguntar coisas sobre a menstruação e a gravidez. Antes do “Papia Ku Mi” não se falava sobre isso”. Aliás, “as meninas ainda faltam à escola quando estão menstruadas, porque não têm condições nem produtos de higiene”. Algo que tem mudado, depois de, no âmbito do “Papia Ku Mi”, ter sido implementado um atelier de costura, onde costuram pensos de pano, reutilizáveis.

Grandes mudanças, depois de um início de projeto conturbado, em que “as pessoas rejeitavam as informações sobre gravidez precoce e excisão”. Um dos comités locais, constituído pelos homens que representam as aldeias, chegou a “expulsar as meninas das palestras, para não ouvirem o que estava a ser dito”.

Pouco a pouco, as mensagens começaram a ser aceites e Mussa destaca que “os programas de rádio ajudaram muito, pois, todos os meses era selecionado um tema para ser comentado e debatido”. Atualmente, “é possível que, em cada cinco pessoas, quatro possam explicar tudo sobre saúde sexual e reprodutiva”.

Para o guineense, “a ideia do “Papia Ku Mi” foi brilhante, porque ainda não tinha sido implementado um projeto tão próximo das comunidades”. O seu envolvimento com a defesa dos direitos das mulheres e crianças começou antes de a AMI chegar a Bolama.

Em 1997, foi secretário de uma associação direcionada para o empoderamento de mulheres. Um “desafio revigorante”, na época em que desistiu de estudar arquitetura em Portugal, porque “o curso era caro para as possibilidades da família”.

O sonho ficou atrás do rasto que deixava entre Buba e Bissau, a trabalhar no transporte de pessoas e mercadorias. E, “começou a nascer outra vida, que queria dedicar a ajudar quem tem dificuldades, não apenas em termos financeiros, mas com novas ideias”, só não sabia como conseguir.

Para se preparar, começou a frequentar ações de formação sobre doenças sexualmente transmissíveis e ambiente. Até que, um dia, cruzou o seu caminho com o da AMI e conseguiu realizar o propósito de vida que sonhava, através do projeto “Papia Ku Mi”.


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