“Para sempre, por agora”

A Ucrânia está sempre no pensamento, mas, voltar ainda não é uma opção. De Kyiv e Kharkiv a terra continua a ser arrasada e as pessoas continuam a desaparecer. Portugal está longe e seguro.

Um novo pedido de casamento feito a quatro mil quilómetros da Ucrânia reescreve uma história interrompida? Dmytro Kashkin e Alina Posokhova casariam a 24 de fevereiro de 2022, em Kharkiv. Quando acordaram estavam em guerra. No dia em que começariam um novo capítulo de vida, começou um novo capítulo da História que descrevem como “infâmia do século XXI” e durante o qual temem que o caminho de cada ucraniano seja apagado.

Divididos entre o ódio e o reconhecimento de uma guerra injusta para os dois lados da fronteira, fazem parte dos mais de 10 mil refugiados ucranianos que estão em Portugal, “para sempre, por agora”. Defendem a autodeterminação do seu país e duvidam que voltar ao modelo da União Soviética reflita a vontade dos ucranianos, recordando que a 1 de dezembro de 1991, a Ucrânia proclamou a independência após um plebiscito teve o apoio de 90% da população. “A cultura e história ucranianas estão mais vivas do que nunca”, afirma Dmytro.

Numa segunda vida em Portugal, descobrem na palavra “saudade” a “zhurba” da Ucrânia. A primeira vez que ouviram português “parecia uma confusão de schschsch impossível de distinguir e conseguir falar, até começarem as aulas no Centor Porta Amiga de Coimbra”.

De casa, as notícias vão chegando. “Kharkiv não está bem, fim da história”, apressa-se Dmytro. É difícil falar sobre a família que ficou numa das cidades mais atacadas na fronteira com a Rússia, onde foram descobertos mais de 600 de corpos de civis em valas comuns, “um número que estará muito longe da realidade”. E uma realidade também muito escondida noutras cidades do Norte na Ucrânia e na região do Donbas, apresentada pela Rússia como tendo “uma vontade separatista, o que é mentira”, está certo Dmytro.

O jovem casal não viu as bombas caírem na Ucrânia. Ouviram à distância. Correram para abrigos onde passaram horas sem saber como encontrariam a superfície.

Com as primeiras explosões a família decidiu que eles partiriam de autocarro, rumo a Luhansk e dali atravessariam a fronteira para a Rússia, onde “as pessoas não percebiam o que estava a acontecer e diziam para voltarmos para casa, porque tudo terminaria em alguns dias”.

As notícias sobre os bombardeamentos e as mortes de civis espalharam-se, de mensagem em mensagem, através do Telegram, uma das redes sociais que ainda era seguro utilizar. Perceberam que não voltariam para trás. Nada voltaria a ser como antes e a guerra duraria muito tempo, “talvez dois a três anos, na melhor das hipóteses”.

Um período que “será relembrado como o tempo mais infame do século XXI, em que tentaram apagar as fronteiras e a identidade de um país”. Apesar da guerra, também lamenta “o que muitos russos estão a sofrer, obrigados a uma guerra com a qual não concordam”.

No que pareceu ao casal “um piscar de olhos”, a viagem rumo a Portugal tinha começado. Partiram da Rússia e na fronteira Dmytro esperou que não o enviassem de volta, para combater. Livres, atravessaram a fonteira russa para a Lituânia, até chegarem a Portugal, onde Coimbra foi o destino.

Querem fazer de Portugal a sua segunda casa e os planos para ficar a longo prazo são muitos.

“A cultura e história ucranianas estão mais vivas do que nunca”

Dmytro é advogado e tem oportunidade de fazer um mestrado para obter equivalências académicas. Meta em que as aulas de português no Centro Porta Amiga de Coimbra são essenciais para “entender a lei portuguesa ao pé da letra”, diz em português, pensando nas palavras, uma a uma. Já folheou o código civil português e percebeu que “a Ucrânia e Portugal têm leis que derivam do mesmo pensamento jurídico, talvez fruto de o código civil ucraniano ter sido concebido a partir de vários códigos europeus, após a qued da União Soviética”.

Para Alina, não é só o coração que está na Ucrânia. Lá ficaram os seus alunos, e a escola onde dava aulas, que “provavelmente já nem existe, tal como tantas casas”.

Em Portugal será difícil voltar a lecionar, “as crianças ucranianas que chegaram já estão integradas na escola e a aprender o português, não podem ficar paradas, à espera que a guerra acabe”. O futuro passa por “ultrapassar as dificuldades e aprender o português o melhor possível”, caso contrário, será preciso escolher outra profissão.

O ódio que ninguém quer sentir

Iryna Smekhno, artista de alma e coração, conseguiu, por alguns meses trabalhar como fotógrafa no Teatro S. João, no Porto. A mesma profissão que tinha na Orquestra Sinfónica de “Kyiv”, como faz questão de pronunciar, relembrando a grafia e fonética reavivada na Ucrânia em 2014, para defender a identidade nacional quando a Rússia tomou a Crimeia e começou a assumir maior pressão e influência sobre a região do Donbas.

Integrou a residência artística criada no Porto para, temporariamente apoiar artistas ucranianos refugiados em Portugal. Durante quatro meses acreditou que conseguiria ser a fotógrafa e ilustradora que foi na Ucrânia. Findo o projeto “o sonho de construir uma segunda vida tem sido difícil de concretizar, mas os pedidos de fotografia vão aparecendo e tudo é possível ainda é possível concretizar, basta continuar a acreditar”.

Quando o trabalho acabou no Porto, Iryna mudou-se para Coimbra com o filho adolescente, Tymofii Drohin, onde seria mais fácil alugar casa e, “com o apoio do Centro Porta Amiga, não só aprender português, como fazer contactos para novas oportunidades profissionais na área da fotografia e ilustração”. Desde que chegou a Portugal faz questão de absorver todas as exposições que encontra pelo caminho “ajudam a formar novos horizontes” e a aceitar a ideia de que a sua vida seguirá num país que não é Ucrânia.

Tymofii tem 17 anos e já está na universidade “pronto para seguir a área de IT [Tecnologias da informação]”. Tem a certeza de que “Portugal é um país de oportunidades para o presente e futuro”. A Ucrânia está sempre no pensamento, mas voltar, para já, não é uma hipótese, “as memórias dos bombardeamentos são paralisadoras e, até há pouco tempo, fogo de artifício ou sirenes ainda deixavam um rastro de pânico”.

O Pai permanece em Kyiv. Já não o deixaram sair. Então juntou-se à resistência contra a Rússia. Iryna teme o que possa acontecer. “Ele abriu uma empresa para comercializar alta tecnologia porque as economias ucranianas e russas continuam com grande movimento e podiam estar a formar-se dois grandes países no lugar de estarem a destruir-se”, conta. O ódio, no entanto, é o maior fosso entre os dois países.

A fotógrafa assume: “odeio a Rússia como está e não acredito que seja capaz de algo bom comandada por pessoas de má índole, porque a seguir a Putin virá sempre outro igual”. Em português pede “ajudem a Ucrânia”.

Aprender português com a AMI

O Centro Porta Amiga de Coimbra mantém 130 famílias ucranianas refugiadas em Portugal “em apoio simultâneo”, destaca Paulo Pereira, diretor daquela valência da AMI. Um grupo que corresponde a cerca de 300 pessoas, das quais 83 estão a aprender português.
Desde junho, a equipa do Centro Porta Amiga de Coimbra abriu quatro turmas de ensino de língua portuguesa, “que têm permitido aos ucranianos perceber melhor o acesso aos serviços que necessitam”.
Paulo Pereira recorda que “uma das maiores barreiras para o grupo, foi, desde o primeiro momento, a língua”. Havia quem falasse inglês de um lado e de outro. Mas, “não era o suficiente para se integrarem no mercado de trabalho, discutir um contrato de arrendamento de uma casa ou frequentar formação”.


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