Portugal é o refúgio de milhares de ucranianos que procuram segurança e paz fugindo à guerra. Olena Petryk assumiu como missão ajudar quem chega, tal como um dia apreciou que a ajudassem.
Texto Ana Martins Ventura | Fotografia José Ferreira
De ruas antigas entrelaçadas com novas, “Coimbra é tão parecida com Lviv que é impossível não estar perto de casa, mesmo depois de tanto tempo longe da Ucrânia”. Olena Petryk pertence à comunidade de imigrantes ucranianos que adotaram Portugal como seu no início do milénio e cruzaram tradições, acreditando que “só aceitando a herança de cada um é possível renovar o ideal da Europa com espaço para todos”. Quando em 2022, eclodiu a guerra e milhares de ucranianos rumaram ao país mais ocidental da Europa, Olena Petryk assumiu a missão de unir a Ucrânia e Portugal com sete ofícios.
A união de culturas apaixona Olena. Desde que chegou a Portugal sempre guardou espaço para celebrar as datas comemorativas da Europa mais ocidental e da Europa mais oriental. “Em casa, havia Natal a 24 e 25 de dezembro e depois a 6 e 7 de janeiro, quando a Ucrânia celebrava o seu. Não faltava bacalhau com todos e bolo-rei, assim como não faltava kutia e outras iguarias da Ucrânia”, como não podia deixar de ser, em casa de uma apaixonada por História.
Segundo o Observatório das Migrações, “o número de estrangeiros em 2022 em Portugal era de 800 mil, o dobro de há 10 anos”, e “foi atribuída nacionalidade a meio milhão nos últimos 15 anos”, sendo a comunidade ucraniana a quarta mais significativa em Portugal.
Para os ucranianos, “no início deste século, Portugal surgiu como um país que tinha muito trabalho e, ao mesmo tempo, algumas cidades lembravam zonas da Ucrânia. Era, sobretudo, amigável”. Olena está certa de que, vinte anos depois, essas condições são a causa para milhares de ucranianos escolherem Portugal novamente, “principalmente porque Portugal fica no outro extremo da Europa, longe o suficiente da guerra”.
No início da guerra na Ucrânia, os dias de Olena transformaram-se num exercício dos tais sete ofícios. “Psicóloga, assistente social, motorista, cozinheira, treinadora, professora, conselheira, assim fui durante meses”, sem parar um instante, para ajudar quem chegava, depois de uma travessia pela Europa, “com pânico de todos os barulhos e sem notícias da família que deixava para trás”. Ao fim do dia, o filho ligava-lhe e perguntava: “ó voluntária, já estou com saudades tuas, ainda estás em Portugal ou já estás na Ucrânia?”. É verdade que nos primeiros dias de guerra partiu com dois amigos rumo a Lviv para ir resgatar os pais. Mas, mais tarde, depois de a mãe regressar, Olena percebeu que, sem esquecer a Ucrânia, o seu lugar era em Portugal, onde há muito a fazer por quem chega.
Não fosse a amizade com Olena, tudo teria sido ainda mais difícil para Iryna Smekhno. Fotógrafa, fixando-se em Portugal salvou o filho de ir para a guerra, mas, nunca mais conseguiu trabalhar na sua área. “Em Portugal, as pessoas tiram elas mesmas as suas fotografias e não há tantos pedidos de sessões fotográficas como na Ucrânia”.
O marido ficou em Kyiv, todos os dias em risco de ser levado à força para a frente de guerra. “Agora, na Ucrânia, é comum pararem carros no meio da rua e levarem homens para irem combater obrigados”. Enquanto isso Iryna acompanha o filho em Portugal que, em setembro, entrou na Universidade de Coimbra. O remédio para o seu coração dividido é o “apoio incansável de Olena que tem sempre tempo para organizar um convívio na comunidade ucraniana, ajudar com o português, aconselhar e acalmar o pânico”.
Olena sente que pode ajudar o país onde nasceu, acolhendo quem chega a Portugal “para que se sintam protegidos”. Na sua missão está também “defender as mulheres que não têm respostas rápidas da sociedade e que, com ou sem guerra, ficam sempre muito desprotegidas”, tal como sentiu nos primeiros anos como imigrante.
Sobrevivente
Olena chegou a Portugal em 2004 para se unir ao namorado e com o plano de se licenciar em Economia. A barreira linguística levou ao adiamento do plano de estudos, que ainda é guardado com muito carinho na lista de sonhos.
Os anos passaram sem falta de trabalho e sentia-se realizada por ter o seu dinheiro, o suficiente para ser financeiramente independente. E foi a independência financeira que a salvou, junto com o filho, quando o alcoolismo do ex-marido destruiu o casamento.
Cada vez que o ex-marido chegava a casa embriagado, a violência escalava de gritos para murros no rosto, braços e barriga de Olena. “Quando a polícia chegava e ele já não estava, perguntavam por testemunhas”, Olena respondia “só se for o gato, o meu rosto não chega?”. Então a agressão era registada como “divergências”.
Mulher, imigrante, vítima, Olena sentiu que lhe foi “sonegado o apoio que deveria ter recebido do Estado e da sociedade civil. As respostas demoram quando as mulheres precisam de apoio imediato”. Não foram raras as vezes em que perguntou às forças de segurança “vão agir quando eu for um cadáver, para lamentar a morte de mais uma mulher?”.
Segundo a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), em 2023, Portugal registou 22 homicídios voluntários só em contexto de violência doméstica (17 mulheres, 2 crianças e 3 homens). Em 2022, no mesmo contexto, ocorreram 28 homicídios dos quais 24 mulheres e 4 crianças.
Para Olena, os números são muito mais do que uma frase escrita, afinal “vidas não se podem medir com números. O mundo certo será aquele em que nenhuma mulher morrerá vítima de violência doméstica, crime sexual ou homicídio às mãos de um psicopata”.