Conto de Natal: O Tempo da menina descalça

No tempo da menina descalça, a II Guerra Mundial tinha chegado ao fim e Portugal só dava conta à distância. A fome e o frio cobriam a vista sobre as fronteiras e o que ia além delas.

Trocava-se milho por novelos de lã que não chegava para tantos xailes. A farda parca de Aurélia, criada de pés descalços no tempo dos campos lavrados e da cartilha “Deus, Pátria, Família”, que ninguém precisava saber ler para conhecer.

Perto do Natal, chegou de Lisboa um convite da irmã. Deixou os pais e os seis irmãos nas montanhas de Coimbra, sentou-se no comboio por dois tostões e desabriu terra fora, pela primeira vez.

Quando chegou, uma multidão de cinquenta, as buzinas de três carros e um elétrico desorganizavam o Rossio.

Nos seus olhos, Lisboa era um gigante deitado! A 39 anos de distância da fundação da AMI e a 53 anos da Expo’98, sem Ponte 25 de Abril, nem Metro, com trânsito contado em meia dúzia de autocarros, elétricos e carros de mulas, de casitas salpicadas entre fantásticos prédios de cinco andares.

Viu jeito de o elétrico não chegar a S. Bento e pela primeira vez, escondeu os pés nus, envergonhada pelos olhos esbugalhados de um velho com botas gastas e de uma mulher com chapéu e luvas.

  • Uns sapatos calhavam-te bem, que a senhora do major não te deixa andar assim em casa!
  • Oh Margarida, vim eu para trabalhar ou para comprar sapatos? A tosse da mãe piorou. Compra lã.
  • Levas os meus. Dois quilómetros bem medidos a pé, a casa do major ficava à Estefânia. Bateu à porta, calçou os sapatos e esperou. Aurélia, que só comia sopa e broa, aprendeu a servir ‘à francesa’ o peru com batatinhas assadas e o pudim flan do almoço de Natal. Viu a cozinheira assar, fatiar e bater e fez contas ao fim do mês. Jurou que havia de ganhar mais do que uns tostões.
    • Passou-te o cheiro pelos beiços e já sabes tudo! Aurelita, compra os sapatos, um casaco e fica-te pela senhora do major!
    • Ai! Verás! Ganho mais ao dia em duas casas ou três.
      Vieram os agitados anos 60, os seus 34 anos e, de repente, era Natal outra vez. Saiu do Metro nos Restauradores e na Baixa ficou de olhos perdidos numa montra com relógios.
      Desejava um presente que não podia comprar e levar para Coimbra: o Tempo.
      Senhora de si, vivia sozinha. Fitou os sapatos e o casaco de lã. Nunca percebeu se o dinheiro que chegou à aldeia fez mais jeito do que as suas mãos lá.
      Desceu até ao Cais do Sodré e entrou no comboio. Ao lado, sentou-se o moço do costume, de paletó e calças muito engomadas, também empregado no Estoril.
  • Bonitos sapatos menina Aurélia.
  • Trocava-os pelo Tempo, Sr. Carlos.
  • O Tempo não se troca. Vive-se e passa.
  • E se não vivi o meu?
  • Deu-lhe para a dúvida?
    Encostou o pé ao dela, deu-lhe uma pisadela. Aurélia sentiu-se feliz. Não podia ser dona de todos os destinos, só do seu.
    Casou e o Carlos levou-a para uma casita na Quinta da Bela Vista. Depois dos sapatos de solteira precisava de uma casa de casada. Atravessava a cozinha para chegar ao quarto. Casa de banho, só teve depois do 25 de Abril.
    Na viragem do milénio, antes do fim do mundo, Aurélia e Carlos mudaram-se para um prédio de oito andares, em Chelas.
  • Lisboa está outra, já ninguém se conhece.
    Entre a Ajuda e o Parque das Nações vivem 547 mil pessoas e todos os dias vão e vêm mais 425 mil. Há meio milhão de carros, 56 estações de Metro, e duas pontes sobre o Tejo.
  • A vista daqui ainda é desafogada. Só tem é uma pessoa à janela.
    Carlos morreu de uma pneumonia implacável, que nem a deixou despedir-se.
    Aos 96 anos, dezembro chega sempre muito só, com pequenos intervalos de companhia, nas horas do apoio domiciliário da AMI.
  • Ainda comprava o Tempo se pudesse, para reviver a sensação dos primeiros sapatos, da vida com o Carlos e da primeira vez que entramos nesta casa. Nunca aprendi a ler, nem a escrever. Aprendi que o Tempo traz o que precisamos no momento certo, se nos distraímos, leva-nos sem darmos conta.

*Baseado numa história real, com personagens e momentos adaptados à ficção.


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