O grito da vida!

Esta é a história da família Tchoncko. Uma família camaronesa que chegou à cidade de Braga há cerca de um mês, resgatada no mar Mediterrâneo pela embarcação Sea Watch 3, em junho deste ano. Uma decisão que levou à detenção da capitã alemã Carola Racketa, ao ordenar o salvamento de 53 imigrantes encontrados à deriva em alto mar.

Nadege e Franck nasceram nos Camarões na década de 90, no seio de famílias tradicionais onde o casamento prematuro e a falta de oportunidades de trabalho são problemáticas intrínsecas das sociedades em que nasceram e cresceram. Porém, os seus caminhos só se viriam a encontrar cerca de vinte anos mais tarde.

As histórias de Nadege e Franck cruzaram-se para lá de fronteiras nacionais. Para lá da realidade do seu país. Nadege, uma jovem mulher de 23 anos, de corpo robusto e olhar longínquo, divide-se entre reviver o passado imediato e entreter o seu bebé de sete meses, Franck, que mordisca a ponta do sapato, alheio à cruel realidade da sua ainda curta história.

Revive os seus 12 anos de idade, quando foi obrigada ao primeiro casamento com um familiar. Os seus dois primeiros maridos faleceram. Foi a caminho do seu terceiro casamento forçado que resolveu dizer “não mais”. Correu pelos campos. Só se recorda de correr. E só parou para aceitar ajuda. Uma mulher que lhe garantiu uma rota segura até à região do Magrebe, na contrapartida de que trabalhasse para ela à chegada.

Nadege estava longe de imaginar os contornos da rede de tráfico humano na qual acabara de ser apanhada. Na cidade de Argel, a realidade de Nadege detonou. Nesta altura já Franck vivia na Argélia desde maio de 2016. Estava irregular no país e procurava a sua chance, o autossustento. Foi numa carrinha que atravessou o deserto do Sahara, deserto esse que lhe ficou com a memória do país que deixou para trás e acima de tudo, com a sua identidade. Franck vivia a situação de tantos milhares de homens oriundos da África subsariana que procuram oportunidades de trabalho no Magrebe, ainda que ilegalmente, na esperança de encontrar uma forma de subsistir e resistir. Na travessia, passou por países como a Nigéria e o Níger. Não encontrou uma única oportunidade. Seguiu rumo a norte. De mão dada ao bebé, como que protegendo-o de um perigo que já passou, conta-nos que o que o motivou a abandonar os Camarões foi a situação de conflito entre grupos separatistas que atentam à segurança da população e promovem, para não dizer obrigam, cada vez mais o envolvimento dos jovens nos confrontos. Não queria compactuar com isso. Queria paz.

Foi em dezembro de 2017 que Nadege e Franck se viram pela primeira vez, precisamente na loja onde Nadege fora forçada a trabalhar na cidade de Argel e onde operava uma rede de tráfico e exploração de seres humanos. Franck prometeu ajudar aquela que viria a ser a mãe do seu filho. Fugiram para Leste, Líbia, o país vizinho. Talvez aí pudessem começar de novo, talvez aí encontrassem o que ambos procuravam, viver em pleno: sem medo, sem opressão, em segurança.

Na cidade de Trípoli, houve amigos de Franck que o ajudaram. Fixaram-se em Zwarah, onde Franck começou a trabalhar para uma família árabe no ramo da construção. Por esta altura, o casal esperava o seu primeiro filho, tiraram partido do breve momento de estabilidade que encontraram, sem saber que seria uma paz efémera, uma alegria arrebatada.

Em novembro de 2018, Nadege é detida e encarcerada numa prisão líbia. Fora denunciada pela vizinhança por ser negra e “ilegal”. Nos seis meses que se sucederam o seu filho nasceu, teve como primeira casa a prisão. Deu-lhe o nome do pai, Franck Emereke Tchoncko. As forças policiais líbias aprovaram a libertação de Nadege mediante o pagamento do equivalente a 1.200 euros, que o seu companheiro conseguiu com a ajuda do patrão. Não havia mais esperança. A Europa era a última hipótese de futuro para a família Tchoncko, agora que havia um terceiro elemento, um menino forte cheio de vontade de viver.

“Foi em dezembro de 2017 que Nadege e Franck se viram pela primeira vez, precisamente na loja onde Nadege fora forçada a trabalhar, na cidade de Argel.”

O patrão de Franck tratou de tudo, deu-lhe dinheiro e arranjou forma de fazer a família embarcar num bote. Em junho de 2019, na costa da Líbia, fazia uma noite de céu limpo. À meia-noite embarcaram 53 imigrantes num barco insuflável, com capacidade para 20 pessoas, em direção a Lampedusa. Ensurdecedor o silêncio do mar e do medo! Os homens instruíam para que todos se mantivessem sentados, as mulheres aquietavam-se em orações. Nadege observava a costa a esvair-se do seu campo de visão, concentrava-se no pequeno Franck. “Como é que fui capaz de pôr a vida do meu bebé em risco? O que será de nós…” pensava.

Passaram pouco mais de 12 horas entre o desespero, a fome e a ira de sobreviver. O sol já raiava quando um colossal vulto se aproximou da embarcação.

A poucos dias do fim do solstício, a embarcação do Sea Watch 3, sob o mandato da capitã Carola Rackete, resgatou 53 imigrantes do mar Mediterrâneo, 13 dos quais autorizados a desembarcar de imediato em território italiano por questões de saúde. Os membros da família Tchoncko foram 3 deles.

Ao abrigo da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), a família Tchoncko foi acolhida em Portugal em setembro deste ano pelo Colégio Luso-Internacional de Braga (CLIB), uma escola e organização que se dedica ao acolhimento de famílias em situação de asilo. Helena Pina Vaz, diretora do CLIB e quem firmou o protocolo de cooperação com a PAR, conta que a família Tchoncko “é a nona família que acolhemos. Neste momento, seis das famílias estão ainda connosco. (…). ”Helena Pina Vaz esclarece que o trabalho do CLIB passa por acompanhar todo o processo de integração das famílias até que se encontrem estabilizadas no país de acolhimento: desde a procura de casa, à inscrição nos serviços públicos de saúde, segurança social, centro de emprego e aulas de língua portuguesa. “Tentamos “ensinar” a viver em Portugal, uma vez que é uma cultura muito diferente e uma rotina familiar muito diferente daquela a que todas estas famílias que já recebemos estão habituadas”.

Explica ainda que os processos de integração são complexos e exigem muita dedicação, muito amor. Dos grandes desafios que tem encontrado nestes acompanhamentos é “a demora das autorizações de residência e outra documentação, pois os serviços do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não conseguem dar resposta atempada.”

A família Tchoncko encontra-se em segurança e saudável. A adaptação será difícil, mas a felicidade há-de vir, quando a dor apaziguar. Mas o desespero, esse, acabou. O silêncio também. Agora, o grito da vida.

 


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