“O Abrigo do Porto já foi a casa de 402 homens”

Entrevista a Susete Santos, Diretora do Abrigo do Porto da AMI.

Conte-nos um pouco dos 11 anos de vida do Abrigo do Porto. Quantas pessoas já passaram por cá?

Desde janeiro de 2006, já apoiámos 402 pessoas. Pode parecer que não mas é muita gente. Sabendo que a nossa capacidade é de 27 pessoas e cada pessoa tem os seus próprios problemas, o seu tempo e o seu plano de desenvolvimento individual, são as pessoas possíveis. De qualquer maneira, isso representa muito tempo de trabalho e de trabalho árduo para conseguirmos reintegrar e devolver
à sociedade estes homens, que são a população com que aqui trabalhamos. Homens em idade ativa e em fase de reintegração profissional.

Se calhar é melhor começar exatamente por aí…

Sim! Em primeiro lugar, somos um centro de alojamento temporário, mas de segunda linha. O que quer dizer que todas as pessoas que estão numa fase de consumos, não podem vir aqui parar. Nós damos apoio ao homens em idade ativa e em fase de integração profissional, livres de quaisquer consumos porque, para serem devolvidos ao mercado de trabalho, têm que estar abstinentes ou
então nunca terem sido consumidores de droga. Isso é uma condição. Existem, aliás, uma série de regras que temos que seguir. Não temos atendimento de porta aberta, ou seja, não podem vir aqui e tocar à campainha à espera que possam aqui ficar de um momento para o outro. Quando acontece, porque já aconteceu, são encaminhados para a triagem, porque aqui no Norte, nomeadamente na cidade do Porto, há uma série de instituições que fazem uma triagem diária das pessoas que se encontram em situação de sem-abrigo.
Só depois disso e de se perceber se reúnem ou não os critérios para integrar o abrigo é que os podemos receber.

E que critérios são esses?

Como referi antes um dos critérios, conhecidos pelas outras instituições porque os divulgamos e retratam uma série de situações, é relativo ao consumo de droga. De igual modo, o indivíduo também terá que estar documentado ou, se não estiver, terá que ter vontade de ficar. Pode até estar em situação ilegal no nosso país mas tem que estar capaz e disponível para obter a legalização, de seguir as nossas indicações para obter documentação, de se reunir connosco e de se dirigir ao SEF – muitas vezes acompanhado por nós. No fundo, têm que se mostrar aberto para fazer uma mudança na sua situação de vida. Porque se não estiver disponível para isso, então também não deve estar capaz de integrar a nossa estrutura. Nós desenvolvemos uma série de atividades, nomeadamente ao nível do
apoio social, que só fazem sentido com essa vontade de mudança. 

E também há a questão da capacidade do Abrigo… 

Exatamente! Quando nos chega um pedido, não temos capacidade de resposta imediata. Muitas vezes ficam em lista de espera, o que
pode significar dois ou três dias, se entretanto algum dos nossos beneficiários se autonomizou ou foi expulso – o que às vezes acontece – mas também pode significar várias semanas. Temos 9 quartos com 3 camas cada, o que perfaz 27 vagas. É por isso que são tão importantes os critérios. Ou seja, se estamos perante alguém que tem ou não capacidade de integrar o mercado de trabalho, se está numa situação de desemprego de longa duração. E depois, claro, há outras variantes a considerar. Não é porque o “José” chega primeiro que o “João” que passa a ter prioridade. Não pode ser assim, porque muitas vezes o “João” tem mais capacidade de integrar o mercado de trabalho ou porque ao contrário do “José”, ainda não teve uma oportunidade. Ou porque, mesmo provisória ou precária, pode ter uma casa ou uma estrutura familiar mais robusta e precisa menos do nosso apoio do que outra pessoa. 

Outro ponto que temos que observar é o contexto de cada um. Muitas vezes, quando não se dá oportunidade a alguém no momento, perdemo-lo. É por isso que sentimos com tantos dos homens que por aqui passam que os temos de agarrar antes que entrem no roteiro da institucionalização ou da alienação porque, para se manterem na rua, às vezes é mais fácil cair em situações de adição para conseguirem aguentar. 

Como é que o abrigo do Porto se diferencia de outro tipo de estruturas que existem aqui na cidade?

Não podemos dizer que é melhor nem pior, mas que é diferente. Quer a nossa equipa, quer o tipo de intervenção que considero única. A nossa equipa é multidisciplinar, como a maior parte das equipas que trabalham na área também é. De igual modo, também prestamos serviços básicos – damos comida, dormida, produtos básicos de higiene – como tantos também prestam. É nos critérios que exigimos para a admissão dos homens que aqui estão e nos serviços especializados em que apostamos que nos diferenciamos: o apoio psicológico, o apoio jurídico, o apoio do clube de emprego, o apoio na procura ativa de emprego, na construção de um currículo ou de como se comportar numa entrevista, a procura de formação… Paralelamente a isso, desenvolvemos também uma série de atividades que estimulam e treinam as competências pessoais e sociais. Temos um clube de leitura e debate, os jogos de tabuleiro que trabalham a interação e o tato social, tão importante para quem esteve na rua, um clube de cinema e o atelier de artes plásticas, uma forma privilegiada de avaliar a destreza manual e algumas competências que nem sempre são evidentes para eles. Tudo isto permite-nos conhecê-los melhor, que estes homens se conheçam melhor e, tantas vezes, descubram capacidades e vocações que eles próprios desconheciam. 

Por outro lado, o facto de não serem muitos, permite que possamos fazer um tipo de atendimento mais personalizado e individualizado,
onde o acompanhamento é quase à medida e isso faz com que a probabilidade de sucesso da reintegração seja bastante maior.

Podemos então dizer que a passagem aqui pelo Abrigo é muitas vezes um momento de viragem na vida destas pessoas? 

Sentimos que somos capazes de devolver e mesmo de dar confiança e autoestima. Muitas das pessoas que aqui estão têm um percurso
de vida marcado pelo abandono, pela exclusão. Muitos foram institucionalizados crianças e, ao terem 18 anos, acabaram por andar um
pouco à deriva, empurrados de uma instituição para outra e sempre se sentiram a mais na sociedade. Quando chegam aqui, são trabalhadas com eles todas estas questões e, em muitas ocasiões, é a primeira vez que têm noção que são únicos, que são cidadãos, com direitos e deveres e que, independentemente do seu passado, têm o seu lugar na sociedade. A questão dos deveres é aliás algo que é bem vincada aqui. A responsabilidade pessoal é um dos valores que passamos nas mais pequenas coisas: desde a questão do cumprimento de horários, às tarefas que eles têm de fazer, nomeadamente nos espaços individuais e comuns. São envolvidos em todos os processos de funcionamento do Abrigo e são convidados a intervir e a opinar em alguns aspetos do funcionamento deste espaço. Adicionalmente,
também, há a questão do pagamento, que tem como objetivo corresponsabilizá-los e habituá-los a respeitar compromissos financeiros. Se aqui chegam e não têm como, não pagam. Mas assim que têm capacidade para o fazer, pagam de acordo com as suas possibilidades, a utilização deste espaço (que varia dos 45 euros aos 24% do seu salário com um teto máximo de 120€). A capacidade de poupança também é algo que incentivamos, uma vez que é um instrumento essencial para mudar a sua situação de vida e para a sua autonomia.
A verdade é que, para todos eles, desenvolvemos um plano individual, que depois determina o tipo de ações e intervenções que iremos promover, obedecendo sempre ao que a Estratégia Nacional para as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (NPISA) preconiza.

Simultaneamente a isso, também promovemos toda uma série de atividades externas, feitas em parceria com outras instituições, nomeadamente a Liga para a Inclusão Social. Participamos em torneios de futebol (com uma equipa de futsal e um grupo de caminhada), em atividades culturais (música, dança, escultura e teatro).

 

AMI –  Percursos de vida

Com 15 anos, Henrique (nome fictício) começou a trabalhar enquanto estudava de noite. Aos 18 anos foi trabalhar para numa loja de fotografias. Praticava desporto, era bombeiro voluntário mas acabou por abandonar os estudos porque não conseguia conciliar tudo em 24 horas. Acabou por dedicar-me a uma das minhas áreas de paixão, ser vigilante, onde trabalhou durante 20 anos.

Depois disso emigrou para Espanha em 2003 e para Israel em 2005, onde trabalhou na hotelaria. Mas as coisas não correram bem e teve que voltar para Portugal. Passados dois anos foi para Londres trabalhar na contrução civil. Regressou a Portugal para acompanhar o crescimento da filha. Voltou a Espanha onde esteve 7 anos a convite de um amigo.  Numas férias veio a Portugal visitar a familia e quando voltou já não tinha emprego. Regressou então a Portugal, onde tem sido difícil reorganizar a vida. Um amigo deu-lhe o contacto de uma organizaçao que o encaminhou para o Abrigo.

AMI – Está no Abrigo há quanto tempo?

Henrique- Faz em Agosto 2 anos.

AMI- Como tem sido este tempo?

Henrique – Estou na fase final do curso de 16 meses na área “Restaurante Bar” na SAOM onde poderei ter um estágio de 120 horas, com equivalência ao 9º ano. O curso tem a componente prática com muitos eventos que terminam de madrugada mas, todos os dias, pelas 9h da manhã já estou na formaçao. O mais gratificante para mim é ouvir as pessoas elogiar o meu serviço. Aqui no Abrigo, desde a primeira hora, encontrei toda a ajuda que precisava, ajudaram-me a encontrar a formação certa para mim, apoiam-me todos os dias. Esta casa ficará para sempre no meu coraçao. Todos os obstáculos são aprendizagens para a vida. Foi aqui que aprendi a viver, tenho um curso e, quem sabe, um trabalho.

 

João (nome fictício) tem 46 anos e  um percurso de vida atribulado. Teve alguns problemas com drogas que se iniciaram aos 20 anos de idade, foi toxicodependente e já esteve preso. Foi criado numa aldeia com os avós até aos 14 anos e só estudou até ao 4º ano. Na cadeia completou o 6º ano.

AMI – Como encontrou o Abrigo da AMI?

João – Através da Segurança Social, quando saí da cadeia.

AMI – Há quanto tempo está no  Abrigo?

João – Faz um ano em Agosto. No inicio foi um pouco dificil porque não tinha apoio familiar e era fácil ter uma recaida mas, quando aqui cheguei, ajudaram-me de imediato a procurar trabalho e encontrei na área da pintura e construção civil. O meu dia começa pelas 6 da manhã, entro no trabalho às 8h e saio às 17h. Trabalho nesta empresa há quase 1 ano.

AMI – Já tinha trabalhado nestas áreas?

João- Sim, especialmente na pintura. Sobretudo em apartamentos, vivendas, hoteis, etc.

AMI –  Quando volta ao Abrigo ao final do dia, tem atividades ?

João – Sim, fazemos muitas dinâmicas de grupo para trabalharmos enquanto equipa e nao estar isolado.

AMI – Com o apoio diário do Abrigo a sua vida voltou a ter objetivos. Quais sao os primeiros que quer alcançar ?  

João – Em primeiro lugar quero pagar todas as minhas dividas, pensar em  ter uma casa e tirar a carta de condução.