Houvesse mais materiais para reparar o velho edifício do Centro Porta Amiga do Porto e Paulo já o teria “revirado do avesso”. Descobriu o talento depois de passar meia vida na rua.
“Não podia continuar dominado pela cocaína, mas contra vontade ninguém se reabilita”
No Porto, Paulo, “arquiteto” sem nunca ter estudado o ofício, está para deixar o quarto alugado rumo a uma casa inteira. A Câmara Municipal do Porto confirmou-lhe que falta um ano para ter habitação social. Com uma casa que pode pagar e trabalho, Paulo tem a certeza de que nunca mais volta à rua e será “arquiteto da sua própria vida”.
Teve consciência do caminho sem retorno depois de dezasseis anos de prisão e outros tantos de rua. Chegou ao tempo de paz e trabalho no Centro Amiga do Porto, aos 52 anos, depois de ter estado do outro lado, como beneficiário. Durante muito tempo, pensou que estava marcado para ser sempre sem-abrigo e toxicodependente. “Consumi todos os tipos de drogas que existiam nas ruas do Porto. Não aceitei os conselhos da minha irmã. Roubei e fui preso, por duas vezes, com penas de oito anos”, recorda Paulo.
Tempo inscrito nas tatuagens que lhe marcam mãos e braços. Umas contam dor, outras, lealdade aos companheiros de prisão, algumas, vitórias. Quando saiu em liberdade, decidiu que “não podia continuar dominado pela cocaína, mas contra vontade ninguém se reabilita”. O plano durou um mês, “era impossível viver entre robots, sem vontade própria, dominados por medicação”.
No regresso, Paulo encontrou no Abrigo Noturno da AMI, no Porto, um lugar onde cabia. Chegou em 2016 e ali, de vontade própria, lutou para “ficar limpo” porque, “de outra forma, não podia ficar no abrigo”. Depois de cinco anos, entre o Porto e o Algarve, onde trabalhava às temporadas na construção civil, alugou finalmente um quarto. Em 2020, recebeu uma proposta inesperada para trabalhar no Centro Porta Amigo do Porto.
Jéssica Silva, diretora-adjunta do centro, está certa de que “sem o Paulo, o edifício não seria o mesmo. Jeito e criatividade não lhe faltam para, com pouco, fazer muito”.
Regressar ao lugar onde lutou contra a droga e a rua não o assustou, porque “as noites repetidas a vender cocaína para ter dinheiro para consumir nunca mais voltam”.
Depois de entrar no Centro Porta Amiga do Porto como auxiliar, um roupeiro velho transformou-se nas novas prateleiras da Loja Solidária, paredes velhas ganharam cor, o cartão transformou-se em castelos e desenhos e algumas paredes perderam as antigas manchas de humidade.
“As ideias de como isto ou aquilo deve ser feito surgem como se tivesse nascido para criar, mesmo sem ter estudado” e, adianta, “há muito para fazer e, não faltassem os materiais, o centro ficaria como novo”. Paulo ainda não perdeu a esperança de ver “todos os projetos concretizados”.
Fotografia: AMI