Há cinquenta anos que a precariedade laboral e financeira não é tão elevada e afeta tanto as mulheres. As dificuldades para conciliar a vida profissional e familiar. Nunca a violência contra as mulheres esteve tão exposta, o que é uma conquista, mas significa que continua a existir. Para Ana Souto e Francisca Pires “nada está garantido para as mulheres”.
Texto: Ana Martins Ventura
Fotografia: AMI
Do direito ao voto, à propriedade, à moda, a casar independentemente da profissão escolhida, à saúde (mental e física), ser mulher com direitos mudou a face de Portugal em 50 anos. Ana Souto e Francisca Pires participaram nas conquistas que lhes trouxeram a liberdade que as suas mães e avós não tiveram.
Estudaram, num tempo em que as meninas para lá da antiga 4.ª classe se contavam pelos dedos, conquistaram a confiança de colegas, que contrabandeavam os livros proibidos, e aprenderam. Aprenderam o suficiente para saberem desde cedo que “a liberdade teria sempre que vir acompanhada de conquistas, porque, de outra forma ninguém daria coisa alguma às mulheres de mão beijada”.
As conquistas refletiram-se na Constituição da República, ainda hoje uma das mais avançadas do mundo, na garantia de direitos iguais entre homens e mulheres. “Mas, muito do que ficou consagrado na lei fundamental, como o salário igual, ainda está por cumprir”, afirma a professora Ana Souto.
No pós-25 de Abril nunca a precariedade laboral e financeira foi tão elevada e afetou tanto as mulheres como agora. Nunca as mulheres tiveram tanta dificuldade em conciliar a vida profissional e a vida familiar. E, no entanto, “as questões do trabalho são fundamentais para a mulher, porque sem ele não conseguem ter autonomia”.
Também nunca como agora a violência contra as mulheres esteve tão exposta, o que é uma conquista, mas também significa que a violência continua a existir e a ser elevada.
Para Ana Souto, essa análise social é reveladora das “adaptações que foram sendo feitas, por quem vai explorando as mulheres de alguma forma”. Portanto, afirma “não há nada que esteja garantido”.
Francisca Pires está certa de que “não perdemos nada porque ainda não ganhámos tudo”. Hoje, a educadora de infância e psicoterapeuta sente-se “completamente livre, mas muito triste, porque apesar de toda esta evolução chegámos ao que chegámos, a uma verdade histórica distorcida sobre a liberdade, que fomenta o não desenvolvimento”. A terapeuta teme os preconceitos que começam a surgir novamente contra as mulheres. Além da mudança assustadora, Francisca aponta “o muito que a violência doméstica ainda ocupa na sociedade, com impunidade, porque ou as penas são brandas, ou os casos arquivados”.
Uma convenção pelos direitos das mulheres e das raparigas
Na defesa dos direitos das mulheres e das raparigas o ano 2023 foi de ouro. Em abril do ano passado, no âmbito da Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025 foi publicado o relatório “Igualdade de Género na União Europeia”. Nas suas páginas ficaram gravadas importantes conquistas legislativas, avanços sociais e desafios persistentes na luta pela igualdade de género na União Europeia (UE) e nos Estados-Membros.
A maior de todas as conquistas: a adoção da Convenção de Istambul, que obriga os Estados-Membros a adotar um conjunto abrangente de medidas para combater todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres e raparigas.
“A liberdade teria sempre que vir acompanhada de conquistas, porque, de outra forma ninguém daria coisa alguma às mulheres de mão beijada.”
Pela primeira vez, na história da Europa, firmou-se um tratado que protege em particular os direitos das mulheres e das raparigas.
A Croácia, Bulgária, Malta, Holanda, Bélgica, Polónia, Lituânia, Finlândia, assumiram os compromissos do tratado de tolerância zero na violência contra as mulheres e aprovaram leis com penas pesadas para proteger as mulheres da violência doméstica, assumindo o compromisso de erradicar o flagelo.
Dos marcos legislativos de 2023, o relatório destaca ainda a adoção da Diretiva de Transparência Salarial, que fortaleceu o princípio da igualdade salarial para o trabalho igual ou de valor igual. Uma diretiva da UE para combater as disparidades dos salários em função do género. Foi também delineado um acordo provisório sobre a igualdade de tratamento e igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional.
Apesar dos avanços, o relatório da UE aponta que ainda persistem lacunas graves na igualdade de género no mercado de trabalho e que a violência contra mulheres, incluindo o feminicídio, prevalece, com abordagens inconsistentes entre os Estados-Membros.
Meninas “de sorte”
Com a extrema-direita a subir e o preconceito a ganhar proporções, “faz todo o sentido as mulheres continuarem a sair à rua, seja de encarnado, branco, amarelo, azul e participar, como nos ensinou Maria Velho da Costa”, afirma Francisca Pires.
A psicoterapeuta considera que foi uma menina “de sorte” e é uma mulher “de sorte” porque conseguiu estudar, algo raro para as mulheres da sua geração e nunca se sujeitou a estigmas sociais como o da velha expressão “ele ajuda em casa” que a deixa “de cabelos em pé”.
“Em 1969 contavam-se pelos dedos as mulheres nas turmas para lá do que hoje é o 9.º ano. E no interior do país ainda eram menos as mulheres a estudar para lá da 4.ª classe”, afirma. Com 13 anos já tinha consciência da forma diferente como as mulheres eram tratadas em sociedade. “Era comum ver as meninas deixarem de ir à escola para tratar da casa. Se alguém podia estudar eram os rapazes”. Mas havia um preconceito generalizado, contra as meninas e meninos pobres.
“As crianças pobres andavam descalças e quando chegavam à escola sem sapatos eram colocadas na última fila, queria dizer que não valia a pena dedicar-lhes muito tempo, porque não iam chegar longe”.
Ana Souto recorda muito da vida antes do 25 de Abril: “A mortalidade infantil era elevada. Na Educação o analfabetismo era enorme e todas as vertentes que acompanhavam a vida das pessoas eram precárias ou insuficientes”. Ana Souto desafia a sociedade a um exercício: “Imaginem tudo isto na vida das mulheres que sustentavam sozinhas as famílias porque os maridos estavam na guerra?”.
Cuidadoras do lar, por vontade ou imposição, no pós-revolução, as mulheres foram as que mais ganharam. O poder falar, poder escrever, poder representar com outra expressão, com liberdade.
Enquanto mães, cidadãs, no espaço profissional, cívico, no espaço político, tudo, ou quase tudo, estava vedado às mulheres. “Dizia-se: à mulher a casa, ao homem a praça”, conta a professora. Um preconceito destruído não com o 25 de Abril, mas nas décadas que se seguiram.
“Elas vieram para a rua”, cantou Maria Velho da Costa, logo depois de Abril “e elas vieram de facto para a rua”. Tomaram a dianteira das cooperativas agrícolas, das fábricas. Obrigaram a que se fizessem creches. Obrigaram a que houvesse água em sítios onde não havia. Em casa tomaram posições e intervieram na vida social e política.