“Marcadas, não derrotadas”

Quando a fome chegou à casa de Mariana e Patrícia, há dezasseis anos, “Portugal estava quase igual a hoje, em risco de fome”. Agora acreditam que será pior para milhares de pessoas a viver no Porto e em Lisboa, com menos do que o Salário Mínimo Nacional.

O medo da fome é o molde da depressão e o segredo de Mariana e Patrícia. De rosto escondido, choram porque “pedir ajuda para comer e vestir-se dói tanto como não ter nada”. Nunca conseguiram recuperar parte da vida depois da grande crise económica e social de 2006 e têm a certeza de que, “a de 2022 é muito pior”.

Estão “marcadas, não derrotadas”, em lados opostos do país e com famílias que não podiam ser mais diferentes, sobrevivem com a ajuda das equipas sociais da AMI, que as acompanham com apoio psicológico e alimentar. No Porto, Mariana ainda combate a sombra da fome, em Lisboa Patrícia foge aos ecos da violência doméstica.

O Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas e o acesso a material escolar doado permitiram-lhes, pelo menos nos últimos anos, manter os filhos a salvo. Fazem parte das cerca de 80.000 pessoas apoiadas em Portugal por este programa, sem o qual, admitem, “não conseguiriam comer”. E entram nos números do EUROSTAT – Gabinete de Estatísticas da União Europeia que referenciou dois milhões e trezentos mil portugueses na pobreza.

Numa vida que “parece ter pertencido a outra pessoa”, Mariana foi fisioterapeuta e o marido empregado de alfândega. Ficaram sem trabalho em 2004, considerados desatualizados e demasiado “velhos” para abraçar outra profissão. Ela dedicou os dias aos filhos, um deles com 95% de incapacidade. Ele tentou trabalhar como agente imobiliário.

A primeira ajuda que a ex-fisioterapeuta recebeu no Centro Porta Amiga do Porto foi psicológica e “estava tão devastada que nem tinha a noção do que precisava”, recorda.

“Recolher o primeiro cabaz alimentar foi uma tortura e ao mesmo tempo uma salvação.”

“Recolher o primeiro cabaz alimentar foi uma tortura e ao mesmo tempo uma salvação”. Mariana diz que “há quem faça dos apoios sociais um modo de vida e há quem veja um cabaz alimentar ou o Rendimento Social de Inserção como sinal de ter perdido tudo, pelo qual trabalharam.

Junto com o marido, combinou esconder a situação da família. Para todos os efeitos, continuavam a sobreviver com os subsídios de desemprego e a ajuda extra de uma conta poupança.

A filha descobriu o que estava a acontecer quando, um dia, viu a mãe “chegar das compras” e perguntou “se a mãe e o pai não têm trabalho, como compram as coisas?”. Mariana não pôde esconder mais.

Contra vontade, tentaram “o Rendimento Social de Inserção a que não têm direito, devido à casa própria, contada como património suficiente”. Quando em 2013, Mariana aceitou a possibilidade de emigrarem, o marido teve dois AVC e ficou totalmente dependente.

Passaram meses em que “o único dinheiro que entrava em casa era o abono dos filhos, ou o que era dado pelos pais”. Depois vieram os apoios para ser cuidadora, as pensões de inclusão e invalidez e “o pesadelo de ser ‘subsidiodependente’ confirmou-se”.

A entrada da filha na universidade trouxe a Mariana “orgulho e preocupação”. Propinas e transportes são pagos com uma bolsa, os livros conseguidos com doações. E de lancheira ao ombro, a sua viagem Porto-Braga-Porto começa às 6h00 para terminar às 22h00. Segue com um objetivo na mala: “ser professora e lutar por um ensino especial de qualidade em nome de famílias como a sua, depois de ver o irmão terminar o 12.º ano sem saber ler nem escrever”.

“Quem serão os nossos filhos amanhã?”

Com uma filha invisual e autista, a frequentar o curso de Artes no ensino secundário, Patrícia conhece os desafios do “ensino especial pouco adaptado e, não raras vezes, dado a conta gotas, e que, ainda assim, se luta para manter”.

Sente a sua luta “mais do que justa”. Depois da pobreza e violência doméstica, quer um futuro melhor para a filha, “se possível longe de instituições onde se encerra a deficiência sem estimular o contributo que cada um pode dar à sociedade”, caso contrário, “que será dos nossos filhos amanhã, quando morrermos?”.

Também ela tem uma deficiência visual, que a faz “necessitar de ajuda constante” com documentos para a filha e para a nova habitação municipal.

Com a ajuda da Câmara de Lisboa e da Segurança Social conseguiu uma casa com renda acessível que, “chegou com buracos nas paredes, infiltrações e ratos”. Pediu transferência e a autorização chegou em janeiro. Aguarda apenas que as obras da outra casa fiquem concluídas. São “pequenos obstáculos, depois da fome e da violência doméstica” que venceu.

Para a ex-cozinheira “as piores marcas são aquelas que a violência deixa na mente. No corpo quase tudo passa”. Dados há mais de vinte anos, os gritos do padrasto continuam na sua cabeça e roubam-lhe a paz das noites. Por muito mal que ele tenha feito, Patrícia não o conseguiu abandonar à sorte na velhice e tornou-se sua cuidadora.

Da fome, guarda a lição de “nunca deitar fora” e “partilhar” se tiver a mais. Sabe o que é “querer comer e não ter e andar a ‘chapinhar’ nos caixotes do lixo”. A avó, com quem viveu durante grande parte da infância, só tinha dinheiro para a renda de casa.

Em 2012, Patrícia ficou reformada por invalidez. Com 299,00 euros de rendimento, mais o abono da filha, e uma renda de casa de 400,00 euros, pensou que “ia voltar a passar pelo mesmo da infância e adolescência”. Foi quando se candidatou a habitação social na Câmara Municipal de Lisboa.

“Viver com metade do valor do Salário Mínimo Nacional parece uma coisa absurda, mas não é novidade para milhares de lisboetas”, afirma.

“No escalão mínimo pagam-se 5,00 euros de renda na habitação municipal, um pouco de água e gás, o pior é a eletricidade”. Com o abono da filha “pagam-se os passes para os transportes públicos e compram-se extras. A alimentação é feita com o apoio do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas e o material escolar vem da AMI. “Será uma vida muito diferente de quem ganha 1.000,00 euros e paga 700,00 euros de renda?”, questiona.


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