Que país fomos no primeiro verão de 1974 e que país somos neste verão de 2024? Da habitação ao trabalho, passando pela igualdade de género, muito está conquistado, mas há quem esperasse mais em menos tempo. Sobretudo, menos retrocesso e esquecimento.
Texto: Ana Martins Ventura
Fotografia: José Ferreira
Diz-se que verão quente foi o de 1975, mas foi no primeiro verão após o 25 de Abril que os sonhos das jovens gerações de então, e das gerações que nasceriam nas décadas seguintes, se começaram a concretizar.
O verão de 1974 foi o verão da vida de Isabel Tomé que, com 14 anos, viu chegar a água potável ao seu bairro. Não esquece o dia em que inauguraram “o simples chafariz, que nem representava uma distribuição em rede, apenas água potável disponível”. Alguns anos depois, ainda menina, casou pressionada pela família. Quando vieram casas novas para os habitantes do bairro ficou feliz por ver a família ser selecionada para uma nova vida, apesar de ter ficado para trás, na casa antiga, por ser casada e representar outro agregado familiar. Pensou que seria passageiro, até mais novas casas serem construídas. Mais de quarenta anos passaram até conseguir, em 2016, uma casa com condições dignas. No verão dos 50 anos de Abril, Isabel sente que, finalmente, vive de forma digna, como lhe foi prometido em 1974.
Na velha casa que os seus pais e irmãos deixaram para trás, de portas e janelas velhas, onde, de noite, os ratos andavam pelos quartos, acabou por criar os filhos sozinha, depois do divórcio. Lamenta que “nem mesmo o esforço de, em tempos difíceis para quem não tinha recursos, estudar e concluir o 12.º ano na área de química e matemática, lhe tenha dado a oportunidade de ter um emprego com salário digno” e que transformasse a sua vida.
Trabalhou na assistência a seniores e crianças, a fazer limpezas e como administrativa até que um dia a saúde começou a falhar. A casa velha desgastou-lhe o corpo e a mente. Isabel recorda bem o dia em que a médica de família disse “a sua vida tem sido muito difícil, a senhora aguentou uma situação seguida de outra, até ceder física e psicologicamente”.

Tempos depois do diagnóstico de esgotamento – hoje o burnout – Isabel foi reformada por invalidez, com cerca de 200,00 euros e sem outros complementos solidários, além do apoio alimentar a que acede através do Centro Porta Amiga da AMI em Cascais. A casa nova que tanto esperou chegou apenas em 2016, já os filhos estavam criados e longe, ainda assim salvou-a quando a saúde cedeu.
Uma conquista tardia pela qual ainda podia estar a aguardar, “se a AMI não tivesse intervindo no processo de atribuição da casa e declarado a urgência da situação”.
De 1994 (ano em que começou a intervir em Portugal) a 2024, a AMI contribuiu para a construção de um novo Portugal onde as pessoas tiveram acesso a educação, saúde, habitação e alimentação saudável, apoiando milhares de pessoas (mais de 80.000) de norte a sul e nas ilhas, sem contar com o impacto da sua presença em mais de 80 países. Este ano, só entre janeiro e março, os serviços sociais da AMI em Portugal apoiaram 5.641 pessoas em situação de vulnerabilidade social. Destas, 698 procuraram o apoio da AMI pela primeira vez, o que corresponde a um aumento de 31% relativamente ao primeiro trimestre de 2023.
Apesar das dificuldades por que passou, para Isabel “o mundo é bom e não há que lamentar. Antes de ‘74, nem água, nem casa, nem pensão de invalidez, nem apoio de uma instituição. Não havia nada. Os pobres ficavam entregues a si mesmos, trabalhavam até morrer ou, se tivessem sorte, na velhice eram cuidados pela família”. Deste tempo o que se perdeu e gostava de voltar a encontrar era “menos egocentrismo e mais solidariedade”. Para quem vê sempre o lado positivo da vida “só faltava mais um bocadinho de tolerância e partilha e menos materialismo, para Abril estar completo, como todos o imaginámos”.
“O meu trabalho, a minha conquista”
Se o trabalho era precário e mal pago há 50 anos e com ele mal se conseguia dar a volta a ciclos de pobreza, como o de Isabel, hoje, o trabalho deveria ser um símbolo de melhores condições de vida.
“Precário continua ele, ou podemos referir-nos de outra forma a contratos de um mês, seis meses?”, questiona o operador de call center Pedro Sousa, que “nos meses mais difíceis, quando as despesas extra com a saúde desorganizam as contas de um salário mínimo”, recorre a apoio alimentar e para pagar a renda da casa. Não pretende negar que, se hoje conseguir trabalho na carreira com a qual se sonhou é um desafio, “há 50 anos, muitos nem sonhavam com carreiras, herdavam-se ofícios, de geração em geração. Trabalho digno e dignidade no trabalho, algo que hoje falta”.
Há horas extra exigidas a troco de folgas (o famoso banco de horas) que apenas será gasto no imaginário, quando se trabalha das 9h00 às 22h00, sem ter quem o substitua. Exigências ao sábado e domingo. Respostas a e-mails durante as férias. Culpabilização por se exigir o direito a não ser contactado durante o período de descanso. Um horário duvidoso, com apertadas alíneas sobre horas de trabalho suplementar. Este é o mundo do trabalho hoje.
Mais do que uma questão de ironia, para Pedro, 1974 e 2024 têm mundos laborais aproximados, “o cenário é apenas mais digital, mas se eliminássemos o digital poderíamos muito bem estar algures na década de 70, sem o banco de horas, claro, ele simplesmente não existia”.
Com otimismo, porque com Abril renasceu um país mais luminoso e uma vida empoderada, Pedro acredita que “tudo continua a ser possível e nada do já conquistado se perderá, isto se impedirmos mudanças desfavoráveis no Código do Trabalho e continuarmos a atualizar salários, mínimos e médios”, afinal, até onde poderá chegar quem tem hoje entre 35 e 40 anos se não conseguir trabalhar, acompanhar os custos de vida, suportar a renda de uma casa?
“O que é um lugar para a mulher?”
Patrícia Maio assume-se “de esquerda, a favor da igualdade, liberdade e fraternidade, mas sobretudo uma mãe que quer uma sociedade justa para a sua filha”. Cresceu em liberdade e com um mundo de possibilidades aberto à sua frente, no entanto, sempre consciente do quanto os direitos da mulher estão num limbo, sempre dependentes de mais uma conquista.
Já foi jornalista, trabalhou numa ONG dedicada à promoção e defesa dos diretos sociais e humanos, agora é, “simplesmente uma empresária”. E depois de tanto lutar pelo seu lugar como profissional fica “revoltada” quando vê algumas pessoas empurrarem as mulheres para um determinado papel, “afinal o que é isso de um lugar para a mulher? Que lugar é esse e porque é dela e não de um homem?”.

Tudo o que está a acontecer em Portugal, as mudanças menos positivas, poderá ser consequência do que fizemos com a liberdade conquistada em Abril. “Pois se o voto é livre, à esquerda ou à direita representa o maior exercício da Democracia”, mas as escolhas devem ser coerentes com aquilo que são as necessidades de todos, porque “o que está a influenciar más decisões políticas e ataques a direitos humanos e sociais é a desinformação” que leva muitas pessoas a embarcarem em discursos extremistas.
A empresária revê a História que a sua geração agarrou à nascença, com a conquista de saúde para todos e educação para todos, mais igualdade social, de género. “As mulheres, sobretudo, conquistaram papeis que lhes eram vedados, mas, para elas ainda está muito por fazer”.
“Pelo meu filho”
Maria João foi mãe “tarde, pelos 40 anos”, como gosta de lembrar, pois, em 2008, havia quem planeasse uma família aos 30 ou 35 anos, mas “mais tarde do que isso ainda não havia tanto como agora”.
Trabalhava numa editora, tinha independência financeira, mas depois de Gabriel nascer e dos primeiros diagnósticos de autismo tudo se desvaneceu. Teve que se demitir para cuidar do filho em exclusivo e ficou financeiramente dependente do marido, numa situação de grande vulnerabilidade, sujeita a abusos psicológicos.
Hoje, Gabriel tem 16 anos e é acompanhado por uma instituição durante o dia, mas Maria João passou demasiado tempo afastada da vida profissional e embora só cuide do filho a partir das 16h00, as tardes e as noites são tão complicadas que fica esgotada. Reconhece que “dificilmente será possível recuperar a carreira”, mas afirma “pelo meu filho tudo vale a pena”.
Numa sociedade que tem cada vez mais condições para prestar cuidados de saúde mental, Maria João lamenta que “as mulheres ainda sejam as mais prejudicadas e as que mais independência perdem, por não conseguirem conciliar a vida profissional e familiar”.
Maria João apenas tem acesso a um apoio de pouco mais de 100,00 euros por cuidar do filho, sendo que, por essa dedicação, teve que abandonar o trabalho como fonte de rendimentos. Gabriel também tem um abono, curto, claro, para alimentação, roupa e o valor dos medicamentos que não é comparticipado. Mãe e filho ficam muitos dias “dependentes do bom humor e boa vontade de um pai que nem sempre quer estar disponível”.
Acabaram as instituições obsoletas, “as pessoas com deficiência já não são encerradas a vida toda, sem direitos e sem dignidade. Essa conquista rumo a uma integração que, um dia, será plena, ninguém tirará aos portugueses”, mas, como as mães sem profissão cuidarão dos filhos, sem acesso a casa própria, sem autonomia financeira? Essa é a questão que Maria João não consegue calar de noite, quando não consegue dormir.