Juiz Conselheiro Álvaro Laborinho Lúcio

Álvaro Laborinho Lúcio, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, antigo Ministro da Justiça, fundador da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e da CrescerSer, tem sido uma voz altiva no que toca à proteção dos Direitos das Crianças. Em entrevista à AMI, o Juiz reflete acerca do “tempo de ser criança”, da pobreza extrema como fundamento do Trabalho Infantil e da relevância da Convenção dos Direitos da Criança.

Quais é que pensa serem as maiores vulnerabilidades e ameaças que as crianças enfrentam hoje em Portugal com consequências para os adultos que serão amanhã?

Uma das maiores vulnerabilidades das crianças hoje está precisamente no facto de, para muitos, elas serem sobretudo os adultos de amanhã, e não seres completos e autónomos enquanto crianças, no seu tempo de serem crianças. Da mesma forma que não falamos do direito a respirar, também não falamos do direito ao tempo de ser criança e, todavia, ele tem de estar na origem da consagração não só de outros direitos, como da previsão da proibição de condutas ou omissões que os ponham em causa. Veja-se o exemplo da proibição do trabalho infantil. Ela encontra a sua explicação exatamente no facto de o trabalho das crianças violar o seu direito ao tempo de ser criança. A proibição não está no facto de o trabalho ser um mal em si mesmo, pelo contrário. É na sua relação com a criança e na violação daquele direito, que ele se torna inaceitável e, por isso, proibido. Em grande medida, poderemos dizer que a maioria das vulnerabilidades das crianças hoje, em Portugal, se encontra nesta falta de consideração pela sua condição de criança e, nessa condição, de verdadeiro sujeito de direitos pelo simples facto de ser pessoa. Outro exemplo, será o da exposição precoce e excessiva à informação, nomeadamente através do uso sem controlo da internet e das redes sociais em geral.

Em matéria legislativa, quais considera terem sido os maiores desenvolvimentos no que diz respeito à proteção das crianças em Portugal, nos últimos 20 anos?

Na sequência da aprovação da Convenção das Nações Unidas Sobre Os Direitos da Criança, aprovada em 1989, e ratificada por Portugal em 1990, várias foram as iniciativas legislativas, não só para preservação e reforço desses direitos, como também para a previsão de outros, para lá dos previstos na Convenção, ou como extensão da previsão desta. Por exemplo, toda a política, nomeadamente a política legislativa, em matéria de promoção e proteção dos direitos da criança, conheceu, a partir de 1991, um significativo salto de qualidade. A Convenção clarificou a importância do respeito pelo «superior interesse da criança», afirmou-a, inequivocamente como verdadeiro sujeito de direitos, reconheceu-lhe dignidade humana própria e permitiu que os maus-tratos, o abandono, a negligência, os abusos, nomeadamente sexuais, fossem sempre considerados violação de direitos, passando a ser tratados como tal. Em matéria de educação, designadamente em termos de educação inclusiva, foram dados passos significativos, o mesmo se tendo verificado no domínio da família, por exemplo com as leis sobre adoção, apadrinhamento civil, regulação do poder parental e outras. Mais recentemente, embora ainda numa fase de concretização, assistimos à valorização do acolhimento familiar e, assim, do acolhimento residencial, em prejuízo da regra da institucionalização que, aplicada embora como medida de último recurso, tinha, como ainda tem, grande prevalência entre nós. Em termos mais gerais, e numa dimensão mais comunitária, vale salientar o papel desempenhado ao nível dos municípios, onde muitas experiências dirigidas às crianças têm vindo a ganhar peso nos seus programas anuais.

De acordo com a sua experiência e opinião pessoais, em Portugal, quais são os mais preocupantes e recorrentes atentados aos Direitos da Criança?

Em primeiro lugar, entre os maiores atentados aos direitos da criança, encontra-se a situação de pobreza severa em que muitas delas se encontram. A pobreza é, como pano de fundo, o fator mais pesado na geração de sucessivas violações dos direitos da criança. Tenho para mim, com outros, que no nosso tempo é chegado o momento de considerarmos a pobreza uma violação de direitos humanos e, por maioria de razão, violação dos direitos da criança. Em muitos casos, é aí que se situam as oportunidades para o crescimento do trabalho infantil, mas é também esse o meio mais favorável ao tráfico de crianças, à prostituição infantil, aos maus-tratos e aos abusos, designadamente em contexto familiar. Importa, porém, fazer uma ressalva. A pobreza, sendo em si um risco, não coloca, só por isso, a criança em situação de perigo. Numa família em situação de pobreza extrema, o que importa é intervir sobre a pobreza, libertando dela a família, e nunca retirar a criança daquele seu meio familiar próprio, ao qual ela tem direito. Apenas em situação de perigo para a criança, isso deve ter lugar.

Considera que a Convenção dos Direitos da Criança é perentória na abolição de todo e qualquer abuso contra crianças que são maltratadas, negligenciadas ou desprotegidas?

A Convenção, pela sua própria natureza, resulta de um vastíssimo acordo entre uma multiplicidade de Estados, com características muito diversas e com situações económicas, sociais e políticas muito diferentes. O acordo conseguido é, por isso, produto de uma conciliação em torno de grandes princípios e valores, sendo certo que, em muitos casos, o compromisso assumido dificilmente
terá concretização na exata medida do acordado. Nessa medida, a Convenção é perentória. Os seus preceitos não são meramente declaratórios, mas sim mandatórios, pelo que países como o nosso e os que nos são mais próximos não podem deixar de se considerar vinculados ao cumprimento estrito das suas normas. Dou um exemplo. A Convenção considera a adoção um meio de proteção da criança privada do seu ambiente familiar, isto é, desprovida de meio familiar normal, e inclui-a ao lado da colocação familiar, da colocação em estabelecimento adequado, e outros. Ora, entre nós, muito caminho foi já percorrido nesse domínio pelo que podemos e, a meu ver, devemos partir para a adoção, não como instrumento ou meio de proteção da criança, mas como fonte originária de família. Para isso, devemos reconhecer, na criança, o seu direito à família, família que não se confunde necessariamente com progenitura. O primeiro direito será à família biológica,
mas porque a biologia se converte em família à qual a criança tem direito. Todavia, se a mera biologia é apenas isso, e a criança um simples produto dela, então o que a criança não tem é família e, aí, a adoção tem de ser fonte da família, da única família da criança, e não um mero meio de proteção. Ora, nada impede que assim se entenda entre nós.

Hoje há Convenções, Tratados e Entidades que as protegem, no entanto, são as crianças que continuam a trabalhar, nomeadamente na Indústria Têxtil, nas minas de Coltan no Congo ou na produção do óleo de palma na Indonésia, entre tantos outros países e indústrias que dependem do seu trabalho e sobrevivem da sua exploração… Como é que a Humanidade deve mobilizar-se para erradicar estas práticas desumanas? Que comportamentos são imperativos alterar?

É cada vez mais fundamental que atentemos na cultura da criança e na importância aqui do conhecimento. A criança não é mais um objeto que nós conhecemos pela tradição, pela sucessão de experiências de vida, passada de pais para filhos. A ciência, em muitas das suas dimensões, evoluiu muito e saber o que é uma criança pressupõe estudo, nomeadamente interdisciplinar, e aprendizagem consciente e responsável. O trabalho infantil, retirando todas as situações extremas de exploração, tráfico e escravização, mesmo em países como o nosso, ainda encontra uma certa tolerância fundada na convicção de que entre andar na má-vida e estar a trabalhar, antes trabalhar, o que logo é reforçado por aqueles que afirmam sempre terem trabalhado desde crianças sem que isso lhes tivesse feito algum mal. Ora, é necessário desmistificar este tipo de discurso. Volto a dizer, o que importa respeitar é o direito ao tempo de ser criança.

No seu entender, quais as principais medidas a ensinar nas escolas e a defender com maior vigor político para a eliminação do trabalho infantil e garantia dos Direitos das Crianças?

A escola não pode deixar de trabalhar sobre este tema, mas, desde logo, a partir da compreensão daquilo que já referi antes como sendo a cultura da criança. Não faz sentido que não haja, na formação dos professores, um capítulo sobre a Convenção das Nações Unidas, nem que os direitos da criança não sejam matéria a tratar no conjunto da escola. É fundamental uma educação para os direitos em geral e para os direitos da criança em particular, sendo aí que começa a formar-se uma cidadania integradora onde o respeito pelo outro possa consolidar-se como atitude normal de vida e de relação social e humana. Também por isso, a educação para a cidadania se mostra indispensável no conjunto do currículo escolar. A criança, como alguém já disse, entra na escola um ponto de interrogação e sai dela um ponto final. É fundamental que os pontos finais não venham a ser quem mais viola no futuro os direitos dos pontos de interrogação.

Como é que é podemos usar esses mecanismos, enquanto cidadãos, para impedir casos de exploração infantil?

Denunciando. Para o fazer, quem tiver suspeitas ou conhecimento de situações de exploração ou de trabalho infantil, deverá dirigir-se ao Ministério Público; às autoridades policiais competentes; ou à respetiva Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, dando conta dos factos que são do seu conhecimento. Fazê-lo é também um ato de cidadania, de uma cidadania responsável.

O que é que o facto de as Nações Unidas terem declarado 2021 como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil veio trazer para esta problemática, para além de awareness e debate?

Trata-se de uma proclamação particularmente importante. Ela, só por si, representa uma tomada de posição comum aos Estados e, nessa medida, deverá ser recebida por estes como um mandato
para a tornarem efetiva a partir de medidas concretas a adotar por cada um. É claro que tal concretização fica nas mãos dos Estados, mas o simples facto de a ONU ter declarado 2021 como Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil constitui já um primeiro passo cuja importância convém não desvalorizar.

Enquanto Juiz, Homem e Ativista nesta matéria, acredita que podemos esperar, dentro de 20 anos, um mundo em que as crianças apenas brincam, vão à escola e são sempre, sob qualquer circunstância, protegidas e acarinhadas pelos que lhe são mais próximos?

Oxalá que sim. Mas não estou absolutamente seguro disso. Todos conhecemos a Declaração do Milénio, aprovada pelas Nações Unidas, em setembro de 2000. Dela constam, como valores fundamentais, a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a tolerância, o respeito pela natureza e a responsabilidade comum. Decorrido quase todo o primeiro quartel, do primeiro século, não
parece que tenhamos razões para otimismos. Porém, se compreendermos que está nas nossas mãos agir, através de uma cidadania ativa e responsável, rejeitando a indiferença a que nos vamos ou nos vão remetendo, e substituindo-a por uma ação coordenada, em que a cooperação e a solidariedade valham mais do que a competição e o sucesso a qualquer preço, talvez voltemos a ter razão para acreditar que será possível.

 


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