Há um hospital perdido no mato, com o sonho de um homem

Quando fundou a AMI “o mundo era mais fácil, apesar de haver menos comunicações”. Hoje uma ONG não é tão protegida no tereno, mas Fernando Nobre não desiste de levar o humanismo onde é preciso.

Criou um hospital no mundo, capaz de se erguer nos lugares mais recônditos, mas ainda sonha com o seu pequeno hospital, perdido no mato, onde poderia ser mais do que um médico, “um homem com magia para curar os feridos e esquecidos, tal como fez Albert Schweitzer”.
Fernando Nobre viajou por 85 países, acompanhou 54 missões de emergência da AMI em 39 países, das quais 32 decorrerem em cenário de guerra, 19 após catástrofes naturais e 5 em locais com surtos epidémicos. Foi grande a viagem e pelo tanto que o seu olhar se estende para lá da sala, onde uma imagem de Aristides Sousa Mendes lidera a luta contra a indiferença, haverá novas terras por descobrir e dores para apaziguar.
No começo dos seus contos, ainda as cadeiras se arrastam e já nos está a levar em viagem pelo mundo, entre uma estrada picada de África e as montanhas da América Central.
Viu a democracia nascer e morrer na Guiné-Bissau com Nino Vieira. Jantou com Mário Soares, apertou a mão de Jacques Chirac e levou o primeiro governante português ao Sri Lanka.
“Já não há convites, as ideias próprias têm um preço”, mas não guarda mágoa do esquecimento, depois de ter sido deputado e candidato à presidência da República. Tem “pena, sim, de em 38 anos de existência a AMI nunca ter sido condecorada em Portugal”.
Assume-se como um “homem feliz e realista, de 70 anos, que conhece um pouco do mundo e do Homem”.
Recentemente, descobriu, por acaso, que, em 2003, foi indicado para o Nobel da Paz. pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, António Manuel de Mendonça Martins da Cruz. “Nesse ano a distinção foi entregue, e bem, à advogada iraniana Shirin Ebadi, que luta pela democracia e direitos das mulheres e crianças no seu país”, recorda.
De qualquer forma, quando em 1999, os Médicos Sem Fronteiras foram distinguidos com o Nobel da Paz, sentiu que deu o seu “grão de areia”.
“A vida é uma sucessão de acasos”, em que os Médicos Sem Fronteiras foram a razão da sua grande aventura.

“Jovem cirurgião de origem portuguesa…”

Em 1981, Fernando Nobre partiu em missão com os Médicos Sem Fronteiras para o Chade, onde decorria a guerra entre o movimento rebelde e o Governo apoiado pela Líbia.
Planeava entrar no país a partir da fronteira com o Sudão, onde se cruzou com um jornalista e um fotógrafo em apuros, da revista francesa L’Express e da agência Sigma. Num impulso, impôs uma vontade “ou passam todos ou não passa ninguém”. Não foi uma atitude inocente “sabia que eles precisavam dos Médicos Sem Fronteiras”. Depois de uma tarde intensa de negociações a fronteira abriu.
A L’Express publicou a reportagem sobre o Chade, com uma fotografia de Fernando Nobre a operar e a legenda “jovem cirurgião de origem portuguesa…”.
Em Portugal, o jornalista Rui Araújo, que trabalhava na equipa da Grande Reportagem da RTP, dirigida por Barata Feyo, leu a reportagem e pensou “quem será este português?”.
Às vezes, Fernando Nobre pensa sobre aquele momento na fronteira entre o Sudão e o Chade. “Se tivesse dito: vocês vão para um lugar e nós para outro. Se o Rui Araújo nunca tivesse visto a fotografia, o Barata Feyo nunca teria acompanhado uma missão em 1983 e feito a reportagem que levou o ministro da Saúde da altura, Maldonado Gonelha, a enviar-me um convite: se passar por Portugal, gostaria de o conhecer”. Uma coisa puxou outra e o convite e conversa deram origem à AMI.
Nasceu em Luanda, dali passou para Bruxelas, onde estudou Medicina. O primeiro contacto com Portugal, terra paterna, foi no verão quente de 1975, com 23 anos. “Um País ainda muito formal, influenciado por décadas de ditadura” e onde “as mulheres pareciam princesas, todas de vestido, sapato de salto e belos penteados”. Assim tudo lhe pareceu e assim o “encantou”, ao ponto de “amar a terra de imediato”. Oito anos depois regressava, para fundar a AMI, em dezembro de 1984.
“Na época, o mundo era mais fácil, apesar de haver menos comunicações”, afirma Fernando Nobre. Chegou a entrar no Chade e em Beirut, clandestinamente, para fazer ação humanitária.
Aos olhos do fundador da AMI, “hoje, entramos num mundo que de certa forma é mais desconhecido do que o dos anos 80 e 90”. A AMI mantém grande parte da sua atividade dedicada a projetos internacionais, estabelecidos em parceria com empresas, instituições e ONG’s locais, pelo seu conhecimento sobre as necessidades das populações, sobre o território, políticas económicas, ou contexto jurídico.
Uma diferença entre o passado e o mundo desconhecido do presente que Fernando Nobre refere é o facto de, “a qualquer momento, seja devido a uma pandemia ou a um conflito, a AMI ter de ficar um longo período a acompanhar o projeto à distância.
Fundaria a AMI, uma e outra vez, mas sabe “já não são possíveis missões como a que a AMI realizou em 1998, na Guiné-Bissau, durante o levantamento da Junta Militar que deu origem à guerra civil”.
Nesse tempo, “as ONG entravam nos países como um tiro no escuro”. A coluna humanitária da AMI foi a primeira a entrar na Guiné-Bissau e “o camião levava 20 toneladas de tudo o que se podia imaginar”, comprado no mercado de Dakar, no Senegal.
Fernando Nobre não escolheu entrar no país por Casamansa, na fronteira entre o Senegal e a Guiné-Bissau, onde todas as instituições organizações se posicionaram a aguardar autorização enquanto os postos de fronteira encerravam um a um, hora após hora.
Decidiu “dar meia volta”, atravessar a Gâmbia, voltar ao Senegal e, a partir daí, entrar na Guiné-Bissau, pelo posto de fronteira de Pirada. “Sorte”, garante o médico, era único posto que ainda não tinha sido fechado.
Quando passou a fronteira encontrou uma mulher que tinha sido mãe há poucos dias e não podia amamentar. “Leite em pó foi o primeiro bem entregue a alguém da Guiné-Bissau, pela AMI”. E Fernando Nobre espera que, por Pirada, ande hoje uma Isabel, nome dado à criança quando a mãe lhe pediu um batismo no momento.
Uma vez dentro da Guiné, ninguém sabia onde seria alocado o centro de operações da AMI. Acabou por ficar a 10 quilómetros de Gabú, na serração que de um português que abriu as portas à ONG.
A guerrilha de Ansumane Mané (chefe da Junta Militar levantada pelo PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), descontrolada e sem o conhecimento dele, chegou a invadir a missão da AMI, em Gabú, e roubar três jipes.
Depois de uns telefonemas, Fernando Nobre acabou a falar com o próprio Ansumane. “Senhor brigadeiro os seus homens roubaram os jipes da AMI e a equipa está aterrorizada”. Horas depois, Ansumane aterrou de helicóptero na missão e ordenou: “quero os jipes da AMI aqui”. Nesse momento “todos ficaram a saber que a AMI era intocável”.
Depois da Guiné-Bissau vieram outras missões descritas como “extraordinárias”. Timor, Equador, Bolívia, Haiti. A missão do Sri Lanka, em 2004, após o tsunami, um país onde a AMI nunca havia entrado nem mantinha quaisquer parcerias.
O voo onde seguia em missão desbravadora até ao Sri Lanka estava para aterrar no aeroporto de Colombo e Fernando Nobre pensava “agora é que vão ser elas, a AMI nunca esteve cá e o Hércules [avião da força aérea portuguesa] chega daqui dois dias com dez toneladas de ajuda humanitária e jornalistas”.
Na saída do aeroporto, inesperadamente, um homem aguardava os representantes da AMI. O padre Reid Fernando havia sido contacto pela Asian Human Rights, associação da qual era representante no Sri Lanka, sendo destacado para receber a acompanhar a AMI. Conseguiu alojamentos, local para a ONG atuar, desbloqueou medicamentos que estavam retidos no aeroporto, “e precisaram de 16 carimbos antes de serem transportados em dois camiões”. Movimentos impossíveis para muitas organizações que, depois de chegarem ao Sri Lanka, viram os bens de primeira necessidade bloqueados em armazéns, durante meses.
Missões com esta audácia já não são possíveis, “agora, o risco de colocar uma equipa humanitária no terreno, na Ucrânia, é muito maior, sendo a maioria da ação humanitária da AMI realizada a partir da Hungria, Roménia e Moldávia. Somos corajosos, não suicidas”, afirma Fernando Nobre.
Fica a esperança de que as ONG’s voltem a ser mais protegidas no terreno e perduram as recordações, onde países como o Sri Lanka e Guiné-Bissau têm lugares especiais.

A ousada AMI, no Boé

A primeira missão que Fernado Nobre fez com AMI foi na Guiné-Bissau, em Lugadjole, região do Boé, “onde nunca, ninguém, se tinha atrevido a ir”.
Para sair de Bissau e chegar ao Boé o percurso começava por estrada asfaltada até Gabú (antiga Nova Lamego), depois percorriam-se 50 quilómetros em estrada picada, até chegar ao rio Corubal, atravessado em jangada para alcançar o centro de Boé. A partir daquele ponto, Lugajol ficava a 48 quilómetros de distância, percorridos através de “uma picada que nem lembra ao diabo feita em 5h00 de viagem num dia normal, com chuva em 12h00”, descreve Fernando Nobre.
Terra de homens grandes e onde, num tempo não muito distante, se pensou fazer a capital do país, a Lugajol chegavam pessoas de vários pontos da Guiné-Bissau, do Senegal e da Guiné-Conacri.
Uma noite apareceu um homem com uma hérnia estrangulada. No momento não havia equipamento cirúrgico disponível. “Coloquei uma panela de pressão na fogueira para esterilizar compressas e um afastador, feito com duas colheres, anestesiei-o da cintura para baixo e operei. No dia seguinte, o homem estava de pé. Essa é a lição que estes povos nos dão”.

“As ONG entravam nos países como um tiro no escuro”

Mulheres e homens de vidas incríveis

Nas histórias de vida que cruzaram a própria história de Fernando Nobre, muitos homens e mulheres tornaram-se heróis e heroínas aos olhos do médico, pela força com a qual se reerguerem e lutaram contra a doença e a pobreza.
No Chade, depois de ter atravessado a fronteira com os Médicos Sem Fronteiras o jornalista da L’Express e o fotógrafo da agência Sigma, o médico recebeu um pedido, para “ir ver uma velha senhora que tinha tantos trapos ensanguentados sobre o peito, que nem se percebia de que eram as feridas”. A operação era urgente e tinha de ser feita ali mesmo, na cabana da mulher.
Enquanto Fernando Nobre se desinfetava no exterior da cabana, cinco homens colocaram-se ao seu redor, em sentido, de lança na mão. Então perguntou ao seu assistente chadiano “tu explicaste bem que a senhora pode morrer? Expliquei, expliquei!”, respondeu o homem.
Operou com anestesia, mas sempre abaixo do limite do necessário, porque naquelas condições havia risco de paragem cardíaca. Durante a operação foram muitos os momentos em que percebeu a dor no corpo da mulher e pediu ao assistente para dar mais um pouco de anestesia. Quando terminou, pensou “não passa desta noite, os ferimentos são muito graves e a operação foi muito dura”. Mas, os toubos, tribo a que esta pertencia têm uma coragem extraordinária, “no dia seguinte, a mulher estava de pé, à volta da fogueira, com outras senhoras a fazer uma bebida”.
Aparecem outra vez os homens das lanças, mas agora traziam galinhas para oferecer. Fernando Nobre recusou, “faziam-lhes mais falta”. E, no entanto, durante os dois meses que esteve na região alimentou-se de “amendoins e chá”.
Era o tempo em que chegavam jovens da guerrilha com braços e pernas garrotados há vários dias, sem outra cura além da amputação. Ao escutar o diagnóstico, os rapazes diziam que antes tinha que falar com marabu, o sacerdote e feiticeiro. Fernando Nobre dizia “vão, mas voltem depressa, agora ainda posso tirar o braço, se a gangrena sobe já não posso fazer nada”. Regressavam sempre. O veredicto? “Marabu diz que o médico branco tem razão, pode cortar”.
No Zimbabué, o seu caminho cruzou-se com o de uma mulher cega que cuidava de um neto com deficiência. Na missão, perguntou quanto custava a operação às cataratas. Um ano depois, quando regressou, a mulher tinha voltado a fazer os seus potes de barro para vender.
Já no Uganda, um homem com HIV e três filhos ao seu cuidado, ganhava a vida a cozer tijolos de barro e palha. E, “agarrou uma oportunidade tornando-se um herói”, para Fernando Nobre.
A AMI ajudou-o a desenvolver a fábrica de tijolos. Com mais rendimentos comprou rede mosquiteira, uma bicicleta. A seguir porcos, galinhas, uma vaca. Por fim, terreno, onde cultivou milho e construiu uma casa, com os tijolos que cozia.
No Bangladesh, conheceu um pai de cinco filhos que pedalava num rickshaw (tuc-tuc) desde as 5h00 às 23h00, para ganhar um dólar. “As pessoas sabem o que é viver com um dólar por dia?”, questiona Fernando Nobre. Nesses países, quando o custo de vida aumenta 40% e o dólar daquele homem passa a valer 0,60 cêntimos, “a fome cresce e só resta a revolta”.
Portugal não tem sido exceção no que toca a olhar a miséria de frente.
Num mercado de Ferreira do Zêzere, conheceu uma senhora, idosa, com uma pequena banca. Tinha pouco mais de 100,00 euros de reforma e tentava vender alguma das alfaces ou nabiças que semeava no terreno ao redor de casa, para ter que comer e de onde tirar mais algum dinheiro. Na mão segurava um velho par de chinelos que procurava remendar com agulha e linha.

Fotografia: Gabriela Nobre


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