Entrevista Garcia Pereira: “Temos feito pouco para assegurar o direito ao trabalho em Portugal”

Por acreditar que ainda há espaço público para todas as opiniões, desde janeiro António Garcia Pereira acompanha os professores nas suas manifestações. Para o histórico advogado “a Educação é fundamental no desenvolvimento de um país e o modo como os professores têm sido desvalorizados é uma perversão completa do papel da Educação”.

O Direito do Trabalho é para Garcia Pereira, além de uma paixão de vida, a melhor defesa para a massa de trabalhadores precários que Portugal gerou.

Garcia Pereira já defendeu professores, médicos, enfermeiros e arquitetos que, depois de demitidos de contratos precários, viveram situações de grave risco social.

Historicamente, o que representarão as recentes manifestações e greves dos professores? 

Ter 150 mil professores em manifestação nas ruas, alguns dispostos a percorrer 400 quilómetros para baixo e para cima, representa uma nova fase na organização e desenvolvimento sindical. Representa o fim das greves fofinhas à sexta-feira à tarde, das vigílias à porta do Primeiro-Ministro e da entrega de petições. Tudo coisas que os governos e empresas agradecem, porque permitem manter a face democrática, sem que uma palha seja movida. 

Quando surge uma disposição dos professores para dizerem “ninguém nos engana, voltamos para semana”, é uma manifestação da justiça dos professores e um exemplo daquilo que outros trabalhadores podem e devem fazer. 

Quem luta pode ganhar e pode perder. Quando se desiste de lutar, perde-se sempre.  

No novo mundo do trabalho quem reivindica? 

Contra pergunto: como é que se mobilizam trabalhadores a recibos verdes? E não podemos esquecer que temos 25% da nossa economia ‘ao negro’, em trabalho não declarado, pago por debaixo da mesa, sem descontos para a segurança social, sem obrigações de segurança e saúde no trabalho.  

Neste quarto, estão os trabalhadores da construção civil, restauração, hotelaria, a agricultura intensiva. A bacia do rio Mira é lugar de vergonha nacional. Toda a gente sabia há anos o que ali se passava com os imigrantes. 

Trabalhar é um direito assegurado em Portugal? 

Temos feito muito pouco para assegurar o direito ao trabalho em Portugal. A precariedade está a ser alimentada por medidas que incentivam contratos precários para fazer face a necessidades permanentes de empresas. 

Há uns anos, as empresas contratavam a prazo e colocam uma cláusula no contrato a indicar “para fazer face a atividade extraordinária”. De acordo com o Código de Trabalho, essa cláusula passou a ser ilegal, porque não preenchia o princípio da fundamentação e tornava-se necessário indicar os factos. O que acontece agora é que a indicação não é feita e simplesmente contrata-se a prazo. A mão-de-obra precária sai muito mais barata às empresas. 

Um trabalhador com contrato sem termo ganha em média mil euros, um trabalhador com contrato a prazo e as mesmas funções ganha em média 750,00 euros e um trabalhador a recibos verdes ganha 600,00 euros.  

Quem são os profissionais mais afetados? 

Os jovens. Mais de 80% dos contratos celebrados pelos jovens são precários. E há empresas que assumem que é da sua prática terem contratos a prazo antes de avançarem para a efetividade. Portanto, fazem dos contratos períodos experimentais de 2 a 3 anos. 

Que responsabilidade pode assumir a sociedade civil perante um trabalhador precário? 

Tem responsabilidade de denúncia. 

A Cáritas denuncia sistematicamente o abandono nas ruas de trabalhadores vindos do Nepal, Paquistão e Índia, contratados para campanhas sazonais na agricultura intensiva. 

Depois, é preciso estar alerta para outra nova massa de precários. Os médicos, enfermeiros, arquitetos, profissionais da comunicação e outros trabalhadores da área do saber, contratados a recibos verdes. 

O trabalho passa por uma fase bastante sofisticada em que muitos desses profissionais constituíram pequenas sociedades por quotas. A maioria dos médicos contratados por hospitais privados estão nesta situação laboral e apenas despertam para o quanto são precários no dia em que a empresa recebe uma carta do hospital a prescindir dos seus serviços. De repente, passaram quinze anos num hospital e não fizeram a sua própria carteira de pacientes, um consultório privado. 

Defendi muitos médicos, enfermeiros e arquitetos no desemprego que, se não tivessem a ajuda da família, teriam de recorrer a apoio alimentar. 

Quando é que o trabalho mudou de face em Portugal? 

Há 50 anos, Lisboa tinha desde a Avenida de Berlim até Moscavide, ou da Venda Nova até à Amadora, fábricas alinhadas, cada uma com 500, algumas com mil trabalhadores. Essa forma de organização da produção facilitava a atividade sindical, porque com uma bicicleta e um megafone rapidamente se mobilizam milhares de trabalhadores nessas zonas. 

Tudo isso foi substituído por uma miríade de pequenas e médias empresas, prestadoras de serviços onde a capacidade de mobilização dos trabalhadores diminuiu. 

Vivemos um ‘apagão’ dos movimentos trabalhistas? 

Os sindicatos tradicionais não conseguiram ver o que a diminuição dos chamados blue color worker [na tradução livre “do fato de macaco azul”] significaria.  Assim como o significado da precarização dos enfermeiros, médicos, professores, arquitetos. Além de não terem precavido o que significariam os ‘inimpregáveis’, jovens que têm uma licenciatura, mestrado ou doutoramento e apenas conseguem um trabalho precário, em áreas diferentes das de formação. 

Como chegamos a este cenário laboral? 

Tudo aconteceu porque foi assumida uma estratégia de aumento da produtividade e aumento da competitividade, com o esmagamento dos custos unitários do trabalho. A lógica da Troika: reduzir direitos sociais, colocar as pessoas a trabalhar mais e receber menos para o emprego e economia aumentarem. 

O Livro Verde sobre as relações de trabalho em Portugal e o relatório “Trabalho Digno em Portugal 2008-2018” desmentem precisamente os pressupostos da Troika. 

A pobreza tornou-se condição da população ativa? 

Cerca de um milhão de trabalhadores têm magros salários que não permitem sair da pobreza. 

Isto acontece num país onde se conseguem diminuir as estatísticas do desemprego, mas não podemos esquecer que os mecanismos usados para mistificar as estatísticas do desemprego são muitos. E só temos números de 75% da economia, os outros 25% representam o trabalho não declarado. Somando 20% da população em situação de pobreza e outros 20% em risco de pobreza e que só não estão lá por força dos direitos sociais. Há qualquer coisa de profundamente errada nesta forma de organização social. 

Segundo um estudo da OXFAM, desde 2020 que 1% da população mundial detém 63% da riqueza. 

No tempo dos saltos tecnológicos temos as melhores ferramentas e não conseguimos que o trabalho nos empodere? 

Deveríamos refletir profundamente quando, com todos os progressos tecnológicos, não conseguimos manter uma reivindicação como a jornada de oito horas de trabalho, pela qual morreram pessoas e a sua luta celebrizou o 1.º de Maio como Dia Internacional dos Trabalhadores. Temos jornadas de trabalho e ritmos de trabalho muito violentos. 

Fotografia: José Ferreira/AMI 


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