Entrevista ao Padre Rohan Silva: 13 anos depois do tsunami no Sri Lanka

padrerohansilva_tsunamisrilanka

Rohan Silva é Presidente do Centro para a Sociedade e Religião e esteve à frente de vários projetos financiados pela AMI no Sri Lanka. Agora que terminou o seu mandato como Provincial dos Oblatas no Sri Lanka, falámos com ele sobre como os efeitos do tsunami de 2004, que matou milhares de pessoas, ainda se sentem naquele país e de como começou a parceria com a AMI.

Como é que tomou contacto com a Fundação AMI?

Foi devido a um acontecimento muito infeliz, inesperado e inédito que aconteceu no Sri Lanka no dia 26 de dezembro de 2004.

Eu era, na altura, o diretor do Orfanato “St. Vincent’s Home” em Magonna. Tinha voltado a casa (Em Colombo) depois do Natal e na manhã do dia 26, depois da missa, pelas 10 horas, alguém apareceu dizendo “Há notícias especiais a passar na televisão”. Estavam a mostrar imagens daquela área, não muito longe de Magonna. As pessoas estavam a fugir das estradas em direção aos templos no topo da colina.

Então, soubemos que um tsunami tinha atingido o Sri Lanka. Comecei a ligar para algumas pessoas para tentar perceber o que se passava, mas não conseguia falar com ninguém. Finalmente, alguém me disse que o mar tinha chegado às estradas principais, que as casas estavam todas destruídas e que havia uma grande confusão.
Eu queria voltar naquela noite para Magonna, mas a maior parte das estradas estava cortada e na manhã seguinte tentei ir lá com um padre que pertencia à minha comunidade e que também estava em Colombo para o Natal. Conseguimos regressar mas não conseguimos chegar à nossa casa. Tudo estava amontoado nas estradas, havia pessoas sem camisas, e todos gritavam: “as nossas casas desapareceram”. Estávamos bloqueados. Não conseguíamos passar dali. Então, apanhámos a estrada que sabíamos que iria pelo interior do terreno, conseguimos alcançar o portão principal e perguntámos ao guarda se já havia pessoas a procurar refúgio na nossa casa. Ele disse que não e que as pessoas estavam a fugir. De seguida, fomos a vários locais e à paróquia vizinha de motorizada, onde a casa da missão tinha ficado destruída e o padre tinha sido obrigado a fugir.

Nessa noite, conseguimos reunir alguns padres e fomos ver onde as pessoas estavam a refugiar-se. Estavam nos templos. As igrejas ficavam perto da praia e os templos ficavam no interior, virados para a terra, pelo que, quando o tsunami ocorreu, as pessoas refugiaram-se nos templos.

Depois, regressámos a casa e começámos a tomar algumas diligências. Preparámos a zona do Calvário que é uma área aberta no Orfanato St. Vincent’s em Magonna e enviámos uma mensagem às Irmãs nas redondezas para saber se elas nos poderiam ajudar. Com o apoio do Bispo, contámos também com a colaboração de quinze Irmãos que estavam no último ano no seminário nacional, em trabalho pastoral.

Começámos então a planear a organização da ajuda. Não sabíamos quantas pessoas iriam chegar, mas contactámos funcionários do governo na região, abrimos o campo e dissemos que todos seriam bem-vindos. As pessoas começaram a chegar. Assim que entraram no campo, começaram a sentir-se mais calmas e seguras.
A seguir, chegou muita ajuda de diferentes lugares e organizações. Foi nessa altura que recebi uma chamada de um padre, Pe. Reid, a informar que havia um grupo de Portugal que tinha chegado e que procurava um local para implementar a sua ajuda. Respondi que teria muito gosto em contar com o seu apoio e pedi ao Pe. Reid para os informar que era possível. Então, o Dr. Fernando Nobre telefonou-me e disse-me que chegariam dentro de 2 dias, e em 2 dias, no dia 30 ou 31 de dezembro, chegou um avião com todo o material necessário. Foi um grande alívio para nós e também para as pessoas porque não tínhamos instalações médicas. Instalámos uma tenda, encontrámos um tradutor e a AMI começou a prestar assistência médica no campo.

É uma longa história, muito bonita, apesar da razão que nos uniu.

Fale-nos um pouco sobre o projeto que a AMI está a apoiar atualmente. Qual é a entidade que o promove?

Após o tsunami, mantivemos o contacto com a AMI. O primeiro apoio ao “Centre for Society and Religion” (CSR) destinou-se à renovação do edifício em Colombo em 2007. Foi nessa altura que assumi a direção do CSR.
Também implementámos um projeto dirigido às crianças dos bairros de lata, onde dispomos de um centro cujo objetivo é cuidar de crianças nas áreas da educação e da saúde.

Já tínhamos este projeto há muito tempo, mas a uma dada altura, devido à falta de fundos, não conseguimos continuar e cedemos o espaço a outra organização. Porém, quando eu regressei e, uma vez que contávamos com o apoio da AMI, decidi recuperar, quer o prédio, quer o projeto.

Estas crianças estão numa situação muito especial, porque a maioria dos pais vão trabalhar e os filhos ficam sozinhos em casa. Às vezes, os mais velhos tomam conta dos mais novos e não podem ir à escola, para além de que a zona circundante não é segura.

Além disso, nessa área, vivem pessoas de todas as religiões, pelo que essa foi também uma experiência de terreno para analisar a harmonia inter-religiosa. Por isso, decidimos reunir um pequeno grupo de crianças e apoiá-las na educação, para que elas pudessem ser um catalisador de mudança na região. Isto porque, melhorando a vida dessas crianças, outras pessoas também iriam ao centro e participariam no projeto. Assim, temos vindo a trabalhar com um grupo de crianças dos 8 aos 16 ou 17 anos de idade e, todos os dias, elas vão para o Centro depois da escola e têm atividades adaptadas ao nível de educação mas também algumas atividades comuns.

Foi assim que começámos. Mais tarde, começámos a introduzir atividades técnicas, para que as crianças pudessem melhorar as suas competências. Estas aulas decorrem ao sábado de manhã. Às vezes, têm teatro, outras vezes canto, desenho ou culinária. Também temos algumas aulas de informática.

Os primeiros resultados deste programa começam a verificar-se, com as crianças mais velhas irem ao sábado ao centro para ajudar as crianças mais novas. Estas crianças vivem na aldeia e nós temo-las visto a tornarem-se crianças com um caráter diferente. Elas tentam ter um modo de vida diferente. Através delas, conseguimos educar a população da área, sobretudo em temas de saúde.

Assim, como as crianças estão a mudar, as famílias também mudam.

Temos reuniões de três em três meses com os pais, onde insistimos na importância de aceitar e apoiar estas mudanças.

Desde quando existe o CSR e que atividades desenvolve?

O CSR começou com o Pe. Tissa Balassurya, um dos padres da congregação, em 1972. Quando os ingleses deixaram o Sri Lanka, generalizou-se a queixa de que eles tinham criado uma elite para governar o país. Essa elite era católica ou cristã, pertencia a altas patentes e era anglófona, mas em 1956, tivemos um governo que retirou o poder a este “clube”, recorrendo aos camponeses, aos médicos, aos monges, aos budistas Singhala e aos professores.

A língua Singhala passou a ser a única língua utilizada pelo governo. Porém, quando a educação passou a ser transmitida também na língua local, muitos estudantes saíram da universidade e não conseguiam encontrar emprego, porque não tinham conhecimentos suficientes de inglês.

O emprego continuava reservado à classe alta. É por isso que houve um grande movimento em 1971, muito influenciado pela ideologia marxista e que levou à criação de um movimento chamado Janatha Vimukthi Peramuna (JVP), o que significa movimento de libertação do povo. Eles eram chamados os Chegueras locais, e empunharam armas para derrubar o governo e assumir o controlo do Estado. Mas o governo utilizou as forças armadas e venceu o JVP. Neste processo, muitos jovens foram massacrados e os que se renderam foram enviados para campos de reabilitação. Milhares de jovens foram mortos durante esta insurreição.

Essa foi a época em que o país esteve aberto a pontos de vista diferentes e a Igreja considerou que deveria estar no terreno e tentar fazer algo com a juventude, com as crianças, através da conjugação da sociedade e da religião. É por isso que o centro é chamado de “Center for Society and Religion” (Centro para Sociedade e Religião). Toda a filosofia que sustenta esta iniciativa consiste em valorizar e promover valores como a justiça, a paz, o amor, a igualdade na sociedade. Os valores religiosos devem apoiar a sociedade em direção a uma mudança, a uma sociedade de paz, de amor, de justiça. Quando o centro começou a funcionar, tornou-se um centro muito ativo para reuniões e debates, incluindo debates políticos. O objetivo era alertar consciências e inspirar as pessoas a tornarem-se agentes de mudança. Cada atividade do centro organizada para e com os trabalhadores, mulheres, minorias, crianças, tinha como objetivo a capacitação através de seminários e programas educativos. É por isso que nos dispusemos a trabalhar com pessoas de religiões diferentes ao criar o que chamamos de “comités de cidadãos”, com o objetivo de formar cidadãos responsáveis.

Queríamos ainda desenvolver atividades baseadas em direitos e o projeto Mattakkuliya foi uma atividade experimental para verificar se tal era possível. Também desenvolvemos projetos de educação para as mulheres. São uma espécie de laboratórios nos quais procuramos verificar se estes valores podem ser implementados.
E temos também os media, que eu considero a arma mais poderosa que possuímos neste momento. Estamos, por isso, a formar cidadãos através de um projeto alternativo de media, sem fins lucrativos, mas destinado a promover os cidadãos preocupados como agentes de mudança.
São essas as atividades que realizamos no CSR, e estão abertas a todos, de qualquer religião.

Qual é a importância de uma instituição como o CSR no Sri Lanka?

Eu penso que o espaço público para o pensamento alternativo tende a diminuir porque os governos não estão preparados para ser desafiados e também pressionam as pessoas a não constituírem oposição, seja de que forma for. Por isso, o CSR sempre foi e continuará a ser um espaço público para o pensamento alternativo. Percebemos que esse espaço era necessário e é com muito gosto que o disponibilizamos.

E quando o país esteve em guerra, éramos a única organização que estava aberta. Aqueles que não tinham sítio para onde ir ou para se esconder, vinham ter connosco e encontravam um refúgio no nosso espaço. Claro que estávamos a ser vigiados. Fui chamado pela polícia várias vezes, o CID – Intelligence Service- (Serviço de Informação) visitou-nos frequentemente. Mas nós não tínhamos medo. Percebemos que as pessoas começaram a depositar mais confiança na nossa instituição. Mas era sempre um desafio!

Quais são as principais dificuldades que as pessoas mais vulneráveis do Sri Lanka enfrentam? E quais as principais causas?

As dificuldades são muitas, porque as pessoas não têm poder para resistir. Há pessoas que perderam o emprego por causa das condições de trabalho. Os direitos dos trabalhadores são muitas vezes, desrespeitados.

As pessoas migram para as cidades porque acreditam que vão encontrar uma vida melhor. Mas, esses fluxos internos trazem desafios sobre as condições de vida, problemas de saúde e muitas outras questões sociais. Além disso, existem propostas de megaprojetos, que aparentam contribuir para o desenvolvimento do país. Esses megaprojetos precisam de grandes áreas que são retiradas aos seus proprietários. Essas são as principais razões pelas quais as pessoas se tornam extremamente vulneráveis. Do ponto de vista político, temos um longo caminho a percorrer, no que diz respeito a um futuro comum para o Sri Lanka.

Penso que as minorias são as mais vulneráveis, porque os seus direitos são, muitas vezes, desrespeitados.
Uma outra questão é a privatização. Há um grande protesto contra a privatização da educação. A saúde também já foi privatizada.

As tensões entre as religiões são também uma outra questão. A situação mantém-se.

A sociedade civil tem capacidade para colocar alguma pressão no governo para que este aborde as questões mais prementes do país.

Aguardemos por um governo forte que oriente o país na direção certa.

Existem soluções para isso? Qual é que acha que pode ser o papel das ONG para concretizar essas soluções?

Sim. Eu penso que o papel das ONG é alertar consciências e, por vezes, trabalhar com o governo, intervindo em questões que o mesmo não consegue resolver.

Há um bom sistema no nosso país, através do qual a administração central está organizada para chegar ao nível local, mas não funciona como devia, por isso temos que capacitar as pessoas para que se tornem participantes ativos no processo de tomada de decisão. Com esse envolvimento, as pessoas poderão até vir a participar nas tomadas de decisão de alto nível. Penso que esse é um dos papéis fundamentais de uma ONG.
As pessoas têm necessidades e é importante, não só, ajudá-las a colmatar essas necessidades, mas também a compreender porque é que essas necessidades existem. É importante questionar para perceber qual a melhor forma de atuação.

E a sociedade civil no Sri Lanka, é uma sociedade civil forte?

Bem, às vezes, parece ser forte, mas também parece ser deveras politicamente organizada.

A sociedade civil deve manifestar com convicção que o mais importante é procurar um futuro comum, pelo que, nesse sentido a sociedade civil deve ser muito ativa, mas infelizmente, tem sido encarada como uma constante oposição ao governo. Assim, por vezes, o governo pode ser um obstáculo à sociedade civil, mas esta também pode ser muito poderosa. Aliás, o governo atual do Sri Lanka emergiu da sociedade civil. Trabalharam muito e ninguém esperava que eles chegassem ao governo. O problema é que não obtiveram a maioria, por isso, todos os processos são muito lentos.

O Sri Lanka é um país pacífico agora. Quais são as marcas deixadas pela guerra e pelo tsunami?

Sim, é um país tranquilo agora, apesar da agitação causada pelos antigos líderes.

Ainda existem muitos problemas por resolver. A questão das pessoas desaparecidas, a reinstalação dos deslocados, as pessoas detidas, etc…

Relativamente às marcas deixadas pelo tsunami, ainda existem vítimas que perderam as suas terras e casas e não receberam qualquer compensação.

Existem sistemas de alerta de tsunami instalados em todo o país. Além disso, existem novas leis que impedem a construção de casas perto do mar e foi implementado um sistema de comunicação e de colaboração muito eficaz para funcionar em caso de emergência.

Quais são os seus desejos para o futuro do Sri Lanka?

Bem, o Sri Lanka é uma terra muito bonita e nós gostaríamos de ver as pessoas a viver em paz, os políticos a trabalhar para o bem comum e o nosso desenvolvimento, devidamente sustentado.

Eu gostava de ver um país sem pessoas pobres nas estradas e a nível político, gostava que fossem encetadas ações para que o país emergisse destas cinzas que o têm vindo a ensombrar durante a guerra e após o tsunami.

Quero acima de tudo que o nosso povo seja feliz e viva em paz.