Entrevista: Amazónia, uma floresta inquietante de esperança

Frederico Brandão, PhD, investigador do ICRAF/CIFOR e especialista em florestas, clima e cadeias de valor tem dedicado o seu trabalho ao estudo da maior floresta tropical do planeta, a Amazónia. Conhece de perto o seu ecossistema e a forma como operam as indústrias que ameaçam a sua prosperidade. Em consequência dos incêndios que aproximaram a desflorestação da Amazónia do seu “tipping point”, a AMI procurou conhecer de forma mais aprofundada, a maior fonte de biodiversidade do planeta.

 

A Amazónia é a maior floresta do nosso planeta, mas a intensiva exploração pela mão do homem tem limitado a sua capacidade de autorregeneração. Que formas de exploração estão a contribuir significativamente para a desflorestação da floresta amazónica?

Em termos gerais, cerca de um quinto da cobertura florestal da Amazónia foi destruída. Esta área desmatada foi principalmente convertida em pastos ou plantações. Após algum tempo, estas áreas podem regenerar e tornarem-se florestas secundárias. Cerca de três quartos desse quinto que foi desmatado é hoje pasto.

As razões são várias, complexas e vão mudando ao longo do tempo, mas no geral elas estão relacionadas com o processo de ocupação da Amazónia a partir dos anos 60. Nessa altura, o regime militar Brasileiro (1964-1985) lançou uma série de políticas como abertura de estradas, incentivos fiscais e programas de colonização que abriram a fronteira do desmatamento.

O mais conhecido ciclo económico é o da borracha no final do séc. XIX e primeira metade do séc. XX que foi responsável pela chamada Belle Époque, uma época muito marcada ainda hoje na arquitetura das cidades de Belém e Manaus.

O enorme tamanho da Amazónia, a ausência de estado e a má gestão por parte de sucessivos governos a partir desses anos 60 dificultou a tarefa e as coisas fugiram do controlo. Desde essa altura, a região tornou-se palco de violência, ocupação desordenada, destruição ambiental e luta pela sobrevivência. Neste contexto específico, a pecuária proliferou. Não foi por acaso nem tem necessariamente a ver com o consumo de carne que a pecuária dominou boa parte desse quinto do território que foi desmatado. A pecuária é uma atividade que pode ser realizada de forma bem rudimentar, com pouca tecnologia, pouca mão de obra e pouco conhecimento. Para além disso o gado era capaz de andar a pé e com isso evitar os enormes custos de transporte que qualquer tipo de produção agrícola implicaria. A pecuária tornou-se por estas razões a atividade mais lógica (do ponto de vista económico) para aquele contexto.

Para além da pecuária, obviamente que a extração de madeira, a produção de outras commodities agrícolas como a soja e a palma, a mineração e as hidroelétricas foram e algumas ainda são, vetores significativos de desmatamento. Importa dizer para finalizar que hoje em dia a principal questão em cima da mesa é a especulação fundiária. Boa parte do desmatamento hoje em dia está relacionado com a ocupação ilegal de terras públicas com a expectativa de obter lucros com a sua venda no curto-médio prazo.

O mundo está bastante preocupado com a Amazónia, mas o governo brasileiro alega que os países ricos se desenvolveram à custa de destruírem as suas florestas e que hoje querem apenas controlar os vastos recursos da região. Há algum fundamento para esta alegação?

Os números de desmatamento na Amazônia têm sido de facto vistos como um copo meio cheio ou meio vazio.

Nos últimos 5000 anos, cerca de metade das florestas foi destruída e convertida noutra coisa. Isto inclui por exemplo as cidades onde moramos e as áreas agrícolas que produzem a comida que comemos. Por uma série de razões, as florestas tropicais foram as áreas mais difíceis e menos apetecíveis de converter e é por essa razão que chegamos ao século XX com a maior parte delas, incluindo a Amazónia, de pé ou mesmo quase intocadas.

Ou seja, grande parte da Amazônia está de pé, não porque a sociedade ou os governos brasileiros tenham feito algo particularmente relevante, mas porque simplesmente ela foi deixada para o fim. Como expliquei acima, é apenas com a entrada dos militares nos anos 60 que a Amazónia começa a ser desmatada em larga escala. Isto dura até hoje, embora o contexto tenha mudado. A partir dos anos 90, a mentalidade vai começar a mudar e o Brasil começa a assumir algum protagonismo na cena ambiental. É no Brasil que a primeira grande cimeira ambiental tem lugar (Eco-92). Desde esse momento, a sociedade Brasileira foi cada vez mais ganhando consciência da importância da Amazónia, criaram-se instituições, formaram-se quadros técnicos, organizações sociais fortaleceram-se, ONG ganharam espaço, Universidades, etc. O desmatamento teve uma queda enorme entre 2004 e 2012. Desde 2012, ele vem numa trajetória de crescimento, menor nos primeiros anos e maior nestes últimos. Os dados de 2019 são já bastante preocupantes.

O maior risco neste momento é o que se chama o “tipping point”, que é basicamente um ponto sem retorno. Antes estimava-se que ele pudesse ocorrer quando a área desmatada chegasse perto de 40% da cobertura original. Mais recentemente, cientistas como o Carlos Nobre e outros falam que o ponto de não retorno pode ocorrer próximo dos 25%. Esse “tipping point” pode levar a uma emissão massiva de carbono para a atmosfera e desequilibrar todo o planeta de um dia para o outro. Falta de chuva leva ao colapso da agricultura, fome e guerras, inundações no outro destroem cidades que não estão preparadas para isso, etc. Tudo isto sem tempo de transição.

Vivemos recentemente uma enorme crise ambiental na Amazónia com consequências geopolíticas, com o aumento do número de focos de incêndios. Como avalia a situação?

fogo, ao contrário de outros biomas, não faz parte do ciclo de regeneração de florestas húmidas como a Amazónia. Em pequena escala o fogo não causa problemas porque se mantém o potencial de regeneração da floresta. Historicamente, o fogo em pequena escala tem sido a forma de adubar o solo que é no geral bem pobre na Amazónia. Isso é o que se chama o modelo “slash-and-burn”. Os índios já o faziam ancestralmente na região. Basicamente consiste em abrir uma área com fogo para plantar alguma coisa, normalmente mandioca. Como não há tecnologia e o solo não é muito fértil, ao fim de poucos anos a terra degrada e a produtividade agrícola baixam. A mesma coisa se aplica nos casos mais recentes de expansão agrícola como tem sido o caso da pecuária. Como tem sido mais barato abrir novas áreas do que restaurar a fertilidade das áreas já usadas, grandes e pequenos proprietários de terra usaram este modelo nos últimos 60 anos na Amazónia. Isto, se for feito em pequena escala não tem problema. A capacidade de regeneração é superior à capacidade de destruição, e por isso, o ecossistema equilibra. Contudo, em larga escala o fogo torna-se um problema e é isso que temos visto.

Convém referir que o fogo está relacionado com o desmatamento, mas não é necessariamente a mesma coisa. Ele pode ser a última fase do desmatamento. A floresta passa por vários estágios de degradação que inclui a retirada de madeira com valor.

Em todo o caso, não há muitas dúvidas de que a crise que assistimos em meados de 2019 esteve relacionada com o aumento do desmatamento. Estudos que têm saído nos últimos tempos indicam uma forte correlação do desmatamento com o número de incêndios. É também praticamente impossível não associar esta crise à postura do governo federal que, desde a eleição, sempre mostrou desprezo pela questão ambiental e ao longo dos primeiros meses de mandato teve uma série de ações sem pés nem cabeça. Em janeiro tomou posse um ministro que aplica de forma sistemática uma agenda contrária à lógica de preservação da floresta. Em primeiro lugar, uma das três principais alas do governo, a chamada ala ideológica, acredita que as alterações climáticas são um embuste. As ONG são parte importante dessa estratégia e por isso precisam também de ser anuladas. Em segundo lugar, uma importante parte da força eleitoral de Bolsonaro vem do que os brasileiros chamam de base “ruralista” que, basicamente são os grandes proprietários rurais, tradicionalmente conservadores e pouco simpáticos com o meio ambiente. Esta base ruralista também é chamada de agronegócio quando o foco é comercial. Este nome existe em oposição a uma suposta polarização com a agricultura de pequena escala, chamada de agricultura familiar.

Defende que países com recursos naturais insuficientes, mas com poderio económico, cada vez mais asseguram o acesso a estes recursos para além-fronteiras. Observa também que os padrões de consumo são cada vez mais distintos de país para país, o que leva o setor privado a posicionar-se de modo a capitalizar as oportunidades de negócio. Em consequência, nos anos mais recentes tem havido uma grande procura de vastas áreas de exploração agrícola e de biocombustíveis em países tropicais em desenvolvimento… Como é que funcionam estas dinâmicas de empresas privadas adquirirem terras em países terceiros? E que efeitos é que isto traz para os pequenos e médios agricultores?

Essa dinâmica de aquisição de terra não é nova. Aliás, como já referi acima, a história da humanidade desde o Neolítico é a história da expansão territorial como forma de assegurar terra, principalmente para o uso agrícola. Por volta de 2008 houve uma crise no sector agrícola que resultou num aumento dos preços. Isto, obviamente, abriu o olho aos investidores e preocupou países com pouco acesso a área agrícola. Nessa altura (e até hoje) a questão dos biocombustíveis ganhou muita relevância e gerou um enorme debate. Mais tarde, acabou por se perceber que houve um certo exagero no jornalismo e na academia sobre este tema. Houve de facto um aumento na corrida pela terra, mas em muitos casos essa corrida pela terra foi feita de forma legal e por cidadãos nacionais. No Brasil, por exemplo, uma reinterpretação da lei em 2010 proibiu a venda de propriedades acima de 5000 hectares a estrangeiros, o que eventualmente ajudou a frear os ímpetos dos investidores. Em todo o caso, a questão da estrangeirização da terra não é muito relevante na Amazónia. A maioria das grandes corporações não opera através de produção própria, mas da compra de produtores brasileiros. No caso da soja, o sector é essencialmente dominado por médios e grandes fazendeiros, na maioria dos casos migrantes do sul do Brasil que se mudam para a Amazónia em busca do sonho de ter uma vida melhor.

Como é que a nível mundial, se poderá conseguir ou assegurar a exploração sustentável e consequente proteção da Amazónia, enquanto património da humanidade, garantindo que este não será mais sobre explorado, mas sim preservado?

Eu tendo a ver o mundo de forma otimista. O facto de se ter preservado cerca de quatro quintos da Amazónia até hoje deixa-me confiante que haja solução para a território a médio prazo. Para isso é importante que uma série de coisas aconteçam: (1) que se atinja o desmatamento zero a curto-prazo, (2) que se regenere uma parte das áreas anteriormente desmatadas de acordo com a legislação brasileira em vigor que permite inclusivamente o uso comercial das reservas privadas por exemplo com sistemas agro-florestais, (3) que se intensifique a produção nas áreas com maior aptidão agrícola, (4) que se resolva a questão fundiária garantindo e reconhecendo os direitos territoriais a todos incluindo índios, quilombolas**, assentados de reforma agrária, ribeirinhos e proprietários privados pequenos, médios e grandes, obviamente dentro de um processo justo e transparente.

*Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

**Quilombolas são os habitantes das comunidades rurais, descendentes de africanos escravizados que vivem fundamentalmente da cultura de subsistência.

Amazonia Rainforest

A Amazónia é uma floresta com 5 500 000 km² de extensão, contida na sua maior fração em território brasileiro, mas também abrangida pelo Peru, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia, Suriname, Guiana e Guiana Francesa.

 

Amazonia Desflorestacao

De acordo com o Global Forest Atlas, desde 1970 cerca de 700 mil km ² da Floresta Amazónica foi dizimada em consequência da desflorestação, cerca de 2’% do total da área da Amazónia brasileira.

 

Amazonia - Frederico Brandao

A bacia hidrográfica do rio Amazonas estende-se por centenas de afluentes como o Huallaga, Ucayali, Pastaza, Napo (Peru); Javari, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, Içá, Japurá, Negro, Trombetas, Paru e Jari (Brasil).

 

Publicou recentemente em livro a sua tese de doutoramento que analisou a expansão do óleo de palma na Amazónia. Quais as principais mensagens?

A produção de óleo de palma tem gerado uma grande polémica no mundo. Paralelo à pecuária na Amazónia, a expansão da palma foi o principal vetor de desmatamento na Indonésia e na Malásia. No Brasil, a palma foi uma atividade bastante incipiente até que na década passada o governo federal começou a incentivar o óleo de palma ligado à produção de biodiesel. A proposta foi ambiciosa e incluiu a proibição de desmatar e incentivos para incluir pequenos agricultores na cadeia produtiva. O meu livro avaliou este processo essencialmente entre 2013 quando comecei a trabalhar na região, e no ano passado. De forma geral, o livro conclui que a palma não foi um driver de desmatamento na Amazónia e que o governo conseguiu direcionar a expansão para áreas já abertas e de baixa produtividade. Por outro lado, o modelo de inclusão dos pequenos agricultores mostrou algumas fraquezas. Apesar de tudo, a palma acabou por não expandir como se esperava e a dimensão do sector continua a ser pequena quando comparada com o Sudeste Asiático. Até então, a proposta do biodiesel falhou redondamente. De forma muito resumida, ele vai para além do óbvio e mostra a complexidade e os dilemas associados à produção de commodities em contextos tropicais.


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