Crises esquecidas

O M. de 27 anos fugiu do Togo em 2017 e fez a viagem até à Líbia, demorou um mês a lá chegar. Só ele sabe o que perdeu e lhe morreu no caminho. Na Líbia, viveu tempo suficiente para ser violentado e escravizado. Poucos dias antes de o resgatarmos foi baleado no braço esquerdo pelas milícias líbias. Ele sabia que não era no braço que lhe queriam ter acertado. Ele sabia que se bala o tivesse atingido uns centímetros mais à direita não tinha sobrevivido. Ele sabia porque viu amigos seus ficarem caídos no chão enquanto fugia. E, portanto, ele sabia que não podia ficar porque esse tiro seria disparado de novo até ser certeiro. Ele não escolheu fugir, ele não escolheu entrar num bote plástico e fazer-se ao mar. Ele não escolheu. Ele simplesmente não tinha outra opção, ficar não era opção, fugir era a única opção. Resgatamo-lo dia 31 de julho de 2019 após ter estado horas à deriva no mar. Resgatamo-lo e ouvimo-lo contar esta história enquanto mudávamos as ligaduras e desinfetávamos a ferida. A ferida foi melhorando, hoje é uma cicatriz, ‘cicatriz da Líbia’, como ele lhe chama, junto de tantas outras tão menos visíveis e tão mais difíceis de curar. As crises humanitárias só são esquecidas por quem tem o privilégio de as esquecer. Para o M. o mediterrâneo é uma crise impossível de esquecer.  É essa a linha que separa: a do privilégio de poder esquecer. O mesmo privilégio de poder não ter medo. No mediterrâneo, só os europeus é que não têm medo do mar. É assim que, no meio da confusão, se distingue quem tem de ser resgatado e de quem resgata.  

Quando falamos do mar mediterrâneo ou dos campos de refugiados / centros de detenção europeus, englobamos tudo isso no tema da “crise de refugiados” ou “crise migratória”, mas a crise nunca foi migratória, a crise é anti-migratória. A crise não advém do fluxo ou número de pessoas migrantes ou requerentes de asilo que entram no continente europeu, a crise é gerada pela violência que tenta impedir esse fluxo. A crise é política e é intencional, podemos comprová-lo facilmente através de vários exemplos: os acordos com países fronteiriços (como a Líbia e Turquia) para reter nos seus países estas pessoas; a ausência de passagens seguras; as devoluções ilegais (vulgos pushbacks, só no ano passado para a Líbia foram mais de 30 000) orquestrados pela guarda costeira grega, milícias líbias e agências europeias como a Frontex; a recusa de operações europeias de busca e salvamento; a militarização violenta das fronteiras; a detenção ilegal de pessoas migrantes e refugiadas; a segregação e marginalização em campos de refugiados europeus; as deportações… A crise sempre foi política antes de ser humanitária, sabemo-lo bem porque depois de anos de assistência humanitária nada mudou.  

Em dezembro do ano passado resgatamos de uma embarcação 66 pessoas. Estavam há 3 dias à deriva no mar. Desidratadas, exaustas, hipotérmicas. Não é o mar que cansa, o que cansa é ter de lutar pelo direito a estar vivo. No último ano, segundo a IOM, morreram nessa luta mais de 1550 pessoas na travessia do mar mediterrâneo central. Desde 2014, foram mais de 19 000 pessoas, 19 000 mortes*.  Não é coincidência, mas sim consequência do fim da operação Mare Nostrum – a última operação de resgate financiada pela UE e estados-membros europeus.  Todas as operações marítimas europeias no mar mediterrâneo que se seguiram à operação Mare Nostrum (Triton, Themis, Sophia, Irini) concentraram-se no controlo e militarização das fronteiras e não na busca e salvamento, edificando esta europa fortaleza e perdendo o objetivo humanitário que deixou claramente de ser prioritário. Estas mortes não são uma tragédia inevitável, são consequência de decisões políticas intencionais.  Dizer que estas pessoas morreram é um eufemismo branco: elas não morreram, foram mortas.  Não é azar, não é a velocidade do vento ou o tamanho das ondas, não são as embarcações, são as políticas migratórias eurocêntricas, coloniais e racistas que matam. E isso só esquece quem tem o privilégio de poder esquecer.  

Ana Paula Cruz / Lokas 

médica, humanitária, ativista  

*este número corresponde apenas aos corpos encontrados ou naufrágios testemunhados, sendo que o número real se estima ser muito maior.  


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