Corações independentes

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Sem saber exatamente quem iríamos encontrar, para além da Diretora do Centro, chegámos à sala comum do Centro Porta Amiga de Chelas, para conhecer o projeto EPES Sénior – Espaço de Prevenção à Exclusão Social Sénior – um projeto dirigido aos idosos da comunidade, pessoas com mais de 70 anos e moradoras da zona.

O EPES é um espaço integrado no bairro social da Flamenga, numa esfera mista de vivências e realidades sociais, situado entre o Parque Urbano do Vale de Chelas, o Colégio Valsassina e a feira do relógio.

As paredes deste pequeno espaço refletem o trabalho multidisciplinar e conjunto desenvolvido pela população mais velha que integra o EPES e que faz daqui o seu lugar de criatividade, de partilha de conhecimentos e saberes tradicionais. No seio da comunidade, o EPES Sénior é essencialmente conhecido pelo “passa-palavra”, pelo encaminhamento das entidades parceiras ou até mesmo através do serviço de distribuição alimentar do Centro e onde se aproveita para promover a existência desta resposta.

Para além de Salomé Marques, diretora do Centro Porta Amiga de Chelas, e de Cátia Costa, animadora do EPES sénior, foram seis as senhoras que fomos encontrar, sentadas a uma distância considerável umas das outras, como se de um comité se tratasse. Isto porque
as sessões do EPES tiveram de ser divididas em pequenos grupos, para reduzir o risco de propagação ou infeção pelo coronavírus.

A disposição das senhoras não denunciava de forma nenhuma a sua fragilidade ou solidão. Neste espaço procura-se prevenir as situações de exclusão social, nomeadamente parcas condições económicas, isolamento social, patologias físicas e mentais ou abandono,
entre outros.

As animadoras como a Cátia são quem conduzem as atividades desenvolvidas, embora a liberdade criativa seja uma premissa.Enquanto distribui linhas e agulhas explica que “tudo o que aqui fazemos, fazemos com um propósito específico, valorizando os saberes de cada uma destas mulheres para criar um ou mais produtos finais”.

As últimas semanas de outubro foram dedicadas à produção de máscaras reutilizáveis “para afastar a virose”, diz a D. Rita de sorriso desatado, uma senhora com mais de vinte anos de casa.

Em circunstâncias normais e para além das atividades quotidianas desenvolvidas no Centro Porta Amiga de Chelas, visitas culturais e excursões são práticas mensais do EPES, que por força da conjuntura atual tiveram de ser temporariamente suspensas.

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As sessões de estética e cuidados de beleza, em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, são também consideradas ações imprescindíveis, na procura de alavancar a auto-estima destas senhoras, fator também determinante do seu bem-estar e longevidade.

O Espaço de Prevenção para a Exclusão Social Sénior de Chelas integra o Grupo de Apoio a Séniores (GAS) – um grupo de instituições de Marvila que trabalha com as populações séniores deste eixo geográfico (Marvila, Chelas e Olaias), através de um intercâmbio de espaços.

Sessões de dança e cantares tradicionais, criação de exposições comunitárias, excursões e dinamização de interações entre os diferentes grupos foram temporariamente suspensos devido à pandemia que veio abalar profundamente as rotinas de sociabilização de todos os séniores que integram o GAS, inclusive das senhoras de Chelas.

A pandemia veio agravar as preocupações e aumentar os desafios da equipa de trabalho do EPES que, em pleno confinamento, adotou como modus operandi um “sistema de vigilância” permanente. Salomé Marques, diretora do Centro Porta Amiga de Chelas, salienta que “foi necessário reforçar a vigilância destas senhoras, sem as podermos acompanhar de perto, assegurando que as suas necessidades eram correspondidas e que apesar de tudo, se sentissem o menos sozinhas possíveis, especialmente aquelas que não têm núcleo familiar ou que ainda têm membros dependentes de si, por motivo de doença mental ou deficiência. Foi uma troca constante de informação entre colegas e familiares”.

D. Maria arruma a máscara semi-feita para o lado e prepara a mesa para o seu “brunch”. Desabafa que passou muitos dias “em solidão”, mas que quando morrer também vai só e que não lhe faz confusão.

Partilhou com o peito aos soluços e uma gargalhada à mistura “foram muitos dias só na companhia da televisão; cheguei a dançar sozinha na sala enquanto via o programa da manhã, com a intenção de fazer exercício, mas logo desisti, que aquilo não ia acabar bem…” As outras senhoras não resistiram em gracejar com a companheira.

O nosso encontro termina à hora em que as senhoras acabam as suas atividades no EPES para retornarem às suas casas, que já vai sendo hora do almoço. A D. Rita despede-se de nós a cantarolar em uníssono com as restantes: “Foi por vontade de Deus, que eu
vivo nesta ansiedade, que todos os ais são meus, que é toda minha a saudade, foi por vontade de Deus. Que estranha forma de vida, tem este meu coração. Vive de vida perdida, quem lhe daria o condão, que estranha forma de vida. Coração independente, coração que não comando, vives perdido entre a gente, teimosamente sangrando, eu não te acompanho mais”.

*Os nomes das participantes do EPES utilizados nesta peça são fictícios de forma a proteger a privacidade das mesmas.


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