“Construir um hospital une países tão distantes como Portugal e o Bangladesh”

No Bangladesh, a AMI quer ajudar a construir mais um hospital. Depois do primeiro ficar concluído em 2011, para levar cuidados de saúde materno-infantil a 45 mil pessoas, agora, em 2022, o objetivo é terminar um novo hospital que ajudará 700 mil pessoas. O sonho nasceu das ideias de uma mulher, Lipika Das Gupta, e já é compartilhado entre o sudeste asiático e Portugal. Para se concretizar, é necessário angariar 50 mil euros.

Ana Martins Ventura

Ruas ladeadas de lixo, casas que se curvam a ciclones, água potável que não chega a todos, desenham a paisagem dos bairros carenciados em Satkhira, no sudoeste do Bangladesh. Escondida, à espera de um motivo para sair à rua, está a alegria de receber quem vem mudar a paisagem. A arte da festa, por estes dias, foi em honra da AMI e para celebrar o novo hospital e instituto de formação que o distrito de Satkhira terá. Com esta conquista, 700 mil pessoas ficam mais perto de cuidados de saúde, mas é preciso angariar 50 mil euros em falta, para concluir a construção do edifício.

A saúde falha entre os bairros de lata e os campos de refugiados. As ambulâncias, camas, médicos e enfermeiros contam-se pelos dedos. Por isso, quando surge a oportunidade, “construir um hospital une países tão distantes como Portugal e o Bangladesh”, afirma Ana Ferreira, representante da AMI.

Tânia Barbosa e Ana Ferreira, que se deslocaram ao terreno em junho deste ano, recordam “receções calorosas, acompanhadas pelos líderes das comunidades locais, com o objetivo de homenagear os elementos de uma instituição que consideram como convidada oficial no país”. Afinal, não é todos os dias que se aposta na construção de um hospital público novo e um instituto de formação na área da saúde.

Um percurso iniciado em 2016 que tem sido difícil, “com o projeto a passar por várias paragens, primeiro devido ao aumento do valor dos materiais de construção, depois devido à pandemia causada pela COVID-19”, contam as representantes da AMI. E, se a construção do edifício está parada, Ana Ferreira e Tânia Barbosa estão certas de que não estão parados os ideais da DHARA (Development of Health & Agriculture Rehabilitation Advancement), associação parceira da AMI neste projeto.

Lipika Das Gupta (Foto: Timothy Lima)

“O sonho de Lipika”

O novo hospital já é conhecido como “o sonho de Lipika” devido à ação incansável desta ativista, fundadora da associação DHARA, que não desiste do plano de levar cuidados de saúde aos habitantes do Bangladesh”, afirma Ana Ferreira.

Lipika Das Gupta sonha construir um hospital no Bangladesh, como quem sonha dar a volta ao mundo, ou comprar uma casa. Sonhar com o “abrir as portas” de um novo hospital à população de Satkhira não é simples, mas, Lipika não aceita o “não” nem desiste das causas em que acredita.

Esta empreendedora nata defende as populações vulneráveis do Bangladesh há mais de 20 anos, mesmo tendo que ultrapassar barreiras sociais e preconceitos. Mulher e hindu, num país de maioria muçulmana, Lipika tem duas caraterísticas dominantes que a poderiam ter impedido de trabalhar em prol das comunidades carenciadas, mas, pelo contrário, tornaram-se a sua força e inspiração.

Há 20 anos, Lipika fundou a DHARA, uma organização não governamental (ONG) de apoio a comunidades vulneráveis que empodera mulheres e contribui para suprimir o que falta às comunidades de Jessore e Satkhira, sem distinção de género, cultura ou religião.

Entre o olhar emocionado de Lipika, a festa na comunidade e a visita ao primeiro hospital que a AMI ajudou a construir em Satkhira, a mente de Tânia Barbosa viaja até 2009. “Passaram treze anos desde que Lipika contactou a AMI em nome da associação DHARA, após um ciclone deixar a cidade de Jessore devastada”, conta.

Na época, a fundadora da DHARA fez uma pesquisa online sobre possíveis ajudas de organizações não governamentais internacionais, disponíveis para proporcionar recursos ao Bangladesh, desde bens alimentares a cuidados de saúde. Encontrou a AMI, contactou e recebeu resposta: “sim, era possível ajudar”.

Tendo a AMI como parceira, Lipika conseguiu que um hospital dedicado à saúde materna e infantil fosse construído em Atulia, também no distrito de Satkhira. Em 2022, espera a conclusão do novo hospital a partir de mais uma parceria entre a AMI e a DHARA, “recordando os bons resultados do primeiro projeto e o impacte que teve na melhoria do acesso a cuidados de saúde, por parte de mulheres e crianças”.

Com o novo hospital e o instituto de formação, a AMI e a DHARA esperam conseguir, não só assistência médica de qualidade para a população de Satkhira, como também formar profissionais através de cursos de enfermagem, patologia, paramédicos, medicina dentária e imagiologia. Um equipamento dependerá do outro, porque os profissionais formados vão realizar estágios no hospital.

De acordo com o plano de construção no 1º andar do edifício, cinco quartos permitirão o internamento de doentes e duas salas de formação estarão disponíveis para os alunos do instituto. O 2º andar terá disponíveis mais seis salas de formação, uma biblioteca e uma sala de professores. No 3º andar, há planos para a construção de um auditório.

A AMI reconhece que “o Bangladesh está distante de Portugal e que este é um momento delicado para a nossa Saúde, com serviços de urgência fechados por todo o país e a assistência a faltar para milhares de utentes”. Mas também defende que “deixar de concluir o novo hospital no Bangladesh é uma enorme perda de recursos, num país extremamente pobre”. Um cenário que, desde 2020, tem levado a AMI a estabelecer mais projetos de ação humanitária no Bangladesh com outra instituição, a BISAP (Bangladesh Integrated Development).

Comunidades em Chittagong

Empoderar as comunidades bihari

A BISAP representa uma parceria da AMI estabelecida na cidade de Chittagong, próxima à baía de Bengala, onde há mais de cinco séculos os navegantes portugueses aportaram e deixaram marcas na cultura até hoje. Nos cemitérios ainda se encontram placas com nomes portugueses e nas igrejas de culto católico mantêm-se palavras e tradições portuguesas.

Entre o passado português e o presente do sudeste asiático, em Chittagong, a equipa da AMI visitou alguns campos de refugiados bihari, uma minoria muçulmana sujeita a perseguição durante e após a guerra de libertação do Bangladesh, em 1971, devido à posição pós-Paquistão, oposta à independência do Bangladesh e ao movimento de língua bengali. Uma população extremamente carenciada para a qual a BISAP e a AMI desenvolveram um projeto de controlo do impacto do Covid-19 e outro de capacitação económica.

No controlo da Covid-19, Tânia Barbosa destaca o objetivo de “prestar assistência imediata e sensibilizar para questões de saúde a população de três campos de refugiados e bairros de lata circundantes”. Um grupo que corresponde a 8070 beneficiários dos quais 3200 são homens, 2500 mulheres, 1500 adolescentes, 800 crianças e 70 adultos e crianças com algum tipo de deficiência física.

Através deste projeto a BISAP e a AMI pretendiam “melhorar a saúde; aumentar a resiliência social em 70 a 90% e aumentar a resiliência económica em 50%, para que as comunidades resistam aos impactos financeiros causados por esta pandemia e futuras crises”.

Linhas orientadoras que as instituições concretizaram com “referenciações para testagem e aconselhamento sobre Covid-19; sessões de sensibilização e de teatro sobre a prevenção da Covid-19, bem como uma campanha digital; ações de orientação dirigidas a líderes comunitários e prestadores de cuidados de saúde e a distribuição de mais de 500 kits de ajuda alimentar de emergência”.

No projeto de resiliência económica dirigido à população bihari, a BISAP e a AMI implementaram “sessões de sensibilização para consciencializar as comunidades para as mudanças na sociedade; desenvolveram um programa de formação em costura, estampagem de tecidos e pintura de telas, capacitando os beneficiários para a importância de terem uma fonte de rendimentos”.

Os dois projetos foram implementados de março a junho de 2022 e durante a missão realizada no Bangladesh, em junho, Ana Ferreira e Tânia Barbosa, depararam-se com mudanças significativas. “A população adotou o uso de máscara e álcool gel e afixou posters com mensagens de prevenção do contágio” e, no centro de formação, “diversas mulheres e homens estão a aprender costura e estampagens, alguns têm emprego assegurado numa empresa de estampagens”.

Em conversa com as técnicas da AMI, Shabnam Skter contou que veio para Chittagong há seis meses e, na mesma época, começou a frequentar o curso de costura, graças ao qual o seu filho pode ir à escola. Shabnam Skter também já dá formação de costura e, um dia, espera ter dinheiro para comprar uma máquina de costura.

Se os campos de refugiados bihari e os bairros de lata, de Chittagong, marcaram o início da visita ao Bangladesh, o maior campo de refugiados do mundo, em Cox’s Bazar, marcou o fim.

Cox’s Bazar

Nascer, crescer e morrer entre os muros de Cox’s Bazar

Acompanhadas pela BISAP, em Cox’s Bazar, e depois de obtidas as devidas autorizações, Ana Ferreira e Tânia Barbosa, ficaram frente a frente com “uma ‘prisão’ onde vivem um milhão e 24 mil pessoas, a maioria refugiados royingya, vindos do Mianmar, que não têm autorização para ir além dos muros do campo de refugiados, alguns entraram lá há cerca de trinta anos”, contam as representantes da AMI.

Se é verdade que, ao longo de três décadas, o maior campo de refugiados do mundo tornou-se numa autêntica cidade, com escolas e clínicas de organizações humanitárias, mercados, barbearias e lojas de equipamentos eletrónicos, Ana e Tânia afirmam como “inegável olhar para os grupos de crianças que nos rodeiam e não pensar que elas nunca conheceram outra realidade, além daquelas ruas improvisadas”.

Apátridas, os refugiados royingya não podem voltar ao Mianmar, onde são perseguidos e considerados inimigos do Estado. No Bangladesh, o seu estatuto está por resolver, pelo menos desde 2017, época em que a violência eclodiu no estado de Rakhine, em Mianmar, e a crise humanitária alcançou grandes proporções, levando mais de 742 mil pessoas a fugir para o Bangladesh. “Enquanto a pertença deste povo não for decidida, as crianças que se despediram da AMI no fim da visita a Cox’s Bazar, continuam reféns no campo de refugiados”, dependentes da ajuda humanitária que as ONG conseguirem fazer chegar além dos muros.


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