AMIConvida Catarina Neves, jornalista: Vida, liberdade e segurança pessoal

“The Russian invasion of Ukraine has triggered the most massive violations of human rights we are living”. A frase, de António Guterres, carrega o peso de ser dita por aquele que é o secretário-geral da ONU, mas também nos dá a dimensão da impotência geral perante a agressão. Na abertura da sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, há uns dias, Guterres disse que o mundo vive hoje a maior violação de direitos humanos e garantiu que a Carta das Nações Unidas está sob ataque.

Mas o que podem as organizações quando os países rasgam o artigo terceiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”?

Onde está a “vida” nas pesadas lutas entre ucranianos e russos na região do Donbass?

Como ter “liberdade” num campo de refugiados rohingya, no Bangladesh, onde falta comida devido aos atuais cortes nos fornecimentos pelo Programa Alimentar Mundial, como acaba de denunciar o relator especial das Nações Unidas?

O que quer dizer “segurança pessoal” quando pelo menos 67 jornalistas foram mortos em todo o mundo, o ano passado (o número mais alto desde 2018 sendo que mais de metade trabalhavam em 3 países: Ucrânia, México e Haiti)?

A guerra na Ucrânia começou no dia 24 de Fevereiro. Até Março tinham morrido cinco jornalistas. Um deles foi morto nos arredores de Kiev, quando eu lá estive. Era colega do nosso tradutor, motorista e amigo, o Valentim, também fotógrafo, mas a aproveitar para trabalhar e fazer algum dinheiro já que o tempo lá não era e continua a não ser para profissões como fotógrafo de casamentos…

O Relatório sobre violações do direito internacional humanitário e de direitos humanos, crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos na Ucrânia (1 de Abril a 25 de Junho de 2022), da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) inclui: testemunhos de violação do direito à liberdade de expressão e à segurança dos jornalistas na guerra na Ucrânia; alegações de que os media e as infraestruturas da Internet ucranianas foram intencionalmente visadas pelas forças russas para

impedir o acesso à informação, incluindo ataques cibernéticos; propaganda de guerra e ódio nacional; disseminação de desinformação sobre o conflito nos media russos estatais; e uso de ferramentas de direito penal para silenciar os críticos da guerra contra a Ucrânia.

A propaganda está por todo o lado a toda a hora e não apenas num cenário de guerra declarado.

Cabe ao jornalista ouvir o máximo, ler muito, estar aberto a conhecer e depois separar o trigo do joio. As narrativas mudam conforme o lado da barricada.

Em Setembro do ano passado, na Praça vermelha, depois de conhecido o resultado dos últimos contestados referendos, Putin disse: “Apelamos ao regime de Kiev para um cessar-fogo e para cessar todas as atividades militares, parar a guerra que iniciou em 2014 e sentar-se à mesa das negociações. Estamos prontos a fazê-lo, como dissemos inúmeras vezes, mas a escolha dos habitantes das regiões de Donetsk, Louhansk, Zaporijia e Kherson, não está aberta a discussão. A escolha está feita. A Rússia não a irá trair. As autoridades de Kiev devem tratar este livre-arbítrio do povo com respeito e não de outra forma. É o único caminho para a paz. Defenderemos a nossa terra com todas as forças e os meios à nossa disposição. E faremos tudo o que pudermos para proteger a segurança do nosso povo. Esta é a grande missão libertadora do nosso povo”. Este discurso prolongou-se por cerca de 40 minutos e serviu ainda para Putin acusar o Ocidente de pretender tornar a Rússia numa “colónia” e para o líder russo assegurar que Moscovo “não aspira” à restauração da antiga União Soviética.

A narrativa do Ocidente e dos Estados Unidos é contrária. E andamos nisto, na verdade, desde 2014, mas com mais visibilidade e consequências mais duras, há um ano.

As máquinas de propaganda estão a trabalhar a todo o gás.

O jornalismo comprometido com a justa observação da realidade tenta relatar, mostrar todas as pontas até as soltas. E o que escolhe quem ouve ou lê?

Muitos interpretam o que lhes chega e depois escolhem o que corrobora a interpretação que já fizeram antes, a crença que defendem, venha o que vier ou quem vier. Nem sequer querem ouvir o que os contraria. E rejeitam a mediação entre o acontecimento e o recetor, feita pelo jornalismo na impossibilidade de cada cidadão estar em todos os acontecimentos que são alvo de notícia. E ao rejeitarem esvaziam o jornalismo e com ele o pensamento. Só que o jornalismo é a melhor ferramenta, conhecida até hoje, para preservar as democracias logo os direitos humanos.

Quando o jornalista esquece o rigor, secundariza os factos, aceita ser voz da propaganda em pele de cordeiro e rasga o princípio da busca da verdade deve ser atacado, mas cuidado para que não acabemos todos a ser julgados como lobos maus.

Para que isso não aconteça ajudaria muito que, por exemplo, a União Europeia não tivesse censurado, que foi o que fez, o canal russo RT e a agência de notícias Sputnik. Facto curioso é o de Putin ter feito o mesmo com a BBC e com a DW (Deutsche Welle) que é uma empresa pública alemã que, só online, publica em 30 línguas.

É proibindo o acesso à informação, mais ou menos equilibrada, que as autoridades de cada país estão a garantir a liberdade de informação?

Desde que o leitor saiba qual o posicionamento do órgão cabe a esse leitor decidir se quer ou não ler. Há muito que, por exemplo, os cidadãos do Reino Unido vivem com jornais, rádios e televisões que, nas eleições, posicionam-se publicamente e de forma clara ao lado de um candidato ou de outro. E todos agradecem a transparência. Sem ela é tão mais difícil escolher o lado mesmo que certo para uns e errado para outros.

“This is a moment to stand on the right side of history. A moment to stand up for the human rights of everyone, everywhere”, sublinha António Guterres e o tanto que precisamos que o secretário-geral da ONU não seja a voz do nada.


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