A madrugada que esperei

Se a liberdade não foi conquistada para sempre, para onde seguem os nossos direitos? Eugénio Ruivo, José Vítor Malheiros e Alfredo Cunha falam sobre o poder de não desistir.

Eugénio Ruivo pensa que, às vezes, “as pessoas não entendem a dimensão que é poder escolher quando e como queremos estar na rua, o que fazer com as nossas vidas, defender boas condição de trabalho, de estudo”

Texto: Ana Martins Ventura

Fotografia: José Ferreira


A mesma camisola que lhe protegeu o corpo torturado depois de intermináveis interrogatórios no Forte de Caxias, protege-o hoje do esquecimento, do tempo e da sociedade. Há 50 anos, o resistente Eugénio Ruivo esperou durante muito tempo para ouvir o som da mudança que trouxe os direitos humanos a Portugal, “os mesmos direitos que hoje vemos perderem-se, como se não representassem um trabalho árduo ao qual muitas pessoas dedicaram as suas vidas”.

Eugénio começou a trabalhar com doze anos, herdando o histórico da mãe que, na década de 1940, com nove anos, veio do Bombarral trabalhar para Lisboa, para a casa de uma família, “ficando a sua vida confinada à cozinha e ao quarto onde dormia, sem tempo para sair à rua e impedida de chegar à varanda”.

Na juventude da sua mãe e na sua “a vida em Portugal era de uma miséria absolutamente flagrante e grande parte das crianças viviam com grandes dificuldades e num elevado índice de pobreza”.

Quando começou a trabalhar junto com os pais, na venda ambulante de roupa, deu-se o despertar para aquilo que o rodeava. Nas feiras viu “crianças a trabalhar descalças e sem nunca terem ido à escola. Retrato profundo de como era Portugal em plena segunda metade do século XX.

A vontade de mudar levou-o a unir-se cedo ao Movimento da Juventude Democrática, para “defender as mulheres, as crianças, os jornalistas”. Numa época em que bastava uma reunião a favor de menos horas de trabalho, creches ou propinas mais baixas, para alguém ser preso, Eugénio enfrentou três detenções e inúmeros espancamentos.

Eram 7h00 do dia 27 de abril quando se sentou no bordo de uma cadeira da cela que ocupava em Caxias e, olhando pela janela, começou a ver alguém aproximar- -se da prisão. Horas depois surgiram nos corredores Sophia de Melo Breyner, Jorge Sampaio, Rogério Paula, Francisco Sousa Tavares, Miguel Sousa Tavares, Joaquim Mestre, José João Louro, Maria Eugénia Varela Gomes, Cecília Areosa Feio, José Cardoso Pires. “Ao vê-los entrar percebi logo que tudo estava a mudar, que tinha chegado a madrugada, ou o dia”.

Eugénio sente que “hoje, muitas pessoas não entendem a dimensão do que é poder escolher quando e como queremos estar na rua, o que fazer com as nossas vidas, decidir como trabalhar e defender boas condições de trabalho, de estudo”.

Conquistar todos os dias

“Cinquenta anos é muito tempo, duas gerações” e, nesse entretanto, onde muito aconteceu, José Vítor Malheiros, jornalista e um dos fundadores do jornal Público, não esquece que, “em Portugal, conquistou-se muito, criou-se a liberdade para combater por direitos e a sociedade de agora e de há vinte anos não têm absolutamente nada a ver com a sociedade que existia até ao 25 de Abril”.

“O que fizemos nos últimos 50 anos foi um trabalho extraordinário”, José Vítor Malheiros

Num país onde tudo mudou, “os direitos humanos estão garantidos em termos legais e na prática, mas é preciso conquistá-los permanentemente”.

Para quem participou na fundação de um jornal no pós25 de Abril “não podia ser mais notório que a liberdade está sempre em processo de conquista”.

A madrugada que foi tão esperada abriu uma porta para a liberdade em 1974, mas “esta liberdade não está conquistada para sempre e isto é uma coisa que os últimos anos têm demonstrado, pela vaga de movimentos extremistas antidemocráticos que têm invadido o país, a Europa e o mundo”.

As irmãs liberdade e igualdade

Se a Liberdade está nas nossas palavras e anseios, José Vítor Malheiros afirma que “há um valor que, com frequência, esquecemos de destacar: a igualdade”.

É claro e certo que “os direitos têm de ser direitos de todos, porque se não forem não temos capacidade para construir uma sociedade justa”. O problema é que nos últimos anos “voltámos a ter graves problemas de igualdade de género e que se repercutem muito no trabalho. Para José Vítor Malheiros é inegável que “as mulheres continuam a ganhar menos e a trabalhar muitíssimas mais horas, não só no seu percurso profissional, mas no trabalho que fazem em casa” e, ainda que, a igualdade esteja plasmada na lei e seja um direito constitucional, na prática não é assim, pelo menos não na totalidade.

As falhas de hoje não desmerecem o percurso feito. “O que fizemos nos últimos 50 anos foi um trabalho extraordinário”, mas a lista de direitos nunca está acabada”. O direito ao trabalho digno está conquistado, no entanto, “deve haver igualdade na divisão das benesses que a sociedade em geral produz e o trabalho continua a ter uma fatia escassa em matéria de divisão igual de benefícios e na distribuição ou acesso à riqueza que produzimos para o país com o nosso trabalho e os nossos impostos”.

Portugal numa fotografia

Se fosse hoje o dia do muito esperado 25 de Abril, Alfredo Cunha tornaria a sair à rua e tirava a mesma fotografia que, à época, representava todo um País: o rosto determinado de Salgueiro Maia.

Tinha vinte anos acabados de fazer e andava pela redação d’O Século, quando, sem querer, lhe vestiram o fato de “Fotógrafo da Revolução”. Captou a chegada da coluna de Salgueiro Maia ao Terreiro do Paço, a manifestação nas ruas, dos momentos negros aos mais felizes, mas gostava mesmo é que o conhecessem por “nunca desistir de lutar pela liberdade, de expressão, de trabalho, de exigir e ter direito a melhores condições de vida em Portugal”.

Para o fotojornalista “só não vê quem não quer, que alguns ideais e direitos começam a ficar abalados e, com isso, estamos a perder terreno no acesso a bens de primeira necessidade que proporcionam um nível de vida digno”.

Claro que, o Portugal de hoje evoluiu e nunca mais será o mesmo. Alfredo Cunha recorda uma produção fotográfica em que estabeleceu um paralelo entre 1970 e 2020. Apesar de todos os problemas de hoje, “é incontornável que há 50 anos o nosso país era uma coisa paupérrima e agora é apenas menos rico que os outros da Europa”.

“Em 1974, a Liberdade era urgente e procurava-se com urgência. Agora, precisamos manter esta procura viva, sempre”, Alfredo Cunha

O fotojornalista desafia-nos a imaginação para situações do quotidiano em que a garantia de direitos é sempre mais sensível. “Imaginem as condições de uma pessoa idosa num lar há 50 anos e as condições que tem hoje”, a imagem é, inquestionavelmente diferente, muito diferente, desde o número de instituições disponíveis, às infraestruturas que as mesmas têm e que permitem a prestação de cuidados continuados de saúde e bem-estar”. E se avançarmos para os direitos na educação, Alfredo Cunha destaca logo “o acesso”.

Segundo o Censo de 1970, no início dessa década Portugal tinha uma elevada taxa de analfabetismo, 20% entre os homens e 31% entre as mulheres. Quanto aos portugueses no ensino secundário eram apenas 2,8% e no ensino superior 1,6%. Em 2021, outro Censo trouxe-nos números que, embora ainda sejam preocupantes numa Europa de direitos e conquistas, são também surpreendentes. A taxa de analfabetismo era de 3,96% entre as mulheres e de 2,1% entre os homens e 1 782 888 tinham formação superior, representando 19,8% da população com 15 ou mais anos.

Se o acesso à educação foi democratizado, as condições em que crianças, jovens e adultos hoje estudam transportam-nos para mundos opostos, “se entrássemos numa escola em 1970 uma parte significativa das crianças estavam descalças e com fome”, afirma Alfredo Cunha. Hoje, nas escolas estão algumas das grandes diferenças entre sermos um país menos rico ou um país paupérrimo. “As crianças têm uma alimentação digna e completa durante o tempo que passam na escola e, cada vez mais, têm um acesso igual à tecnologia”, descreve o fotojornalista.

E, se a habitação é, neste momento, uma das grandes crises que Portugal enfrenta, com rendas inflacionadas e prestações bancárias incomportáveis, em 1970 quase 30% dos portugueses estavam mal alojados e, no distrito de Lisboa, 21 mil famílias residiam em bairros de lata.

Alfredo Cunha acompanhou esse retrato em que “faltava tudo, e não só nos bairros de lata, mesmo nas casas das aldeias as condições eram muito precárias. Não tinham água canalizada, instalações sanitárias e eletricidade. Frigorífico ou televisão eram objetos de luxo, acessíveis para poucos”.

Celebraram-se 50 anos de Liberdade há cinco meses, meio século da nossa História que será especialmente assinalado até 2026. Se dedicamos tanto tempo à celebração dos 50 anos de Abril então que se reflita sobre “o que significa isto da ‘liberdade conquistada’ e como a devemos proteger. Afinal, a perda de liberdade é a base de tudo o que deteriora as condições de vida, por isso, em 1974, a Liberdade era urgente e procurava-se com urgência. Agora precisamos manter esta procura viva, sempre”.


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