A criança que Deolinda foi

Deolinda Rocha começou a trabalhar aos 15 anos pela força das circunstâncias em que a sua família vivia, num contexto marcado pela vulnerabilidade económica e pela falta de apoios sociais. Aos 19 anos, a morte da sua mãe tirou-lhe o chão e a juventude, tendo de se tornar mulher e matriarca muito antes do tempo que deveria. Criou 4 irmãos, com idades entre os 6 e os 17 e ainda a sua filha, acabada de nascer. Esta é uma parte da sua história que ainda hoje recorda, aos 48 anos, com pesar e compaixão pela menina que um dia foi.

O trabalho fez parte da sua juventude…o facto de ter tido de trabalhar, moldou o seu crescimento?

Sim, eu cresci à força. Aos 15 anos já eu trabalhava numa frutaria a acartar caixas, não me podia mostrar porque não tinha idade. Quando lá ia a fiscalização, eu tinha sempre de me esconder. Fazia este trabalho para conseguir ganhar um pouco mais para ajudar a minha mãe, que trabalhava nos leilões, ali ao lado, também na Casal Ribeiro. Este foi o rumo da minha vida, tudo o que aparecia, eu aceitava.

Muitas vezes, eu ia para casa da senhora da peixaria passar fins de semana, porque para a minha mãe era difícil alimentar 5 crianças. Eu ficava muito com ela, era ela praticamente que me vestia, calçava, porque as pessoas viam que eu era uma miúda e ajudavam muito a minha mãe por causa disso. Viam também que eu era uma lutadora, aprendi isso com a minha mãe.

Pelo facto da Deolinda ter trabalhado, os seus irmãos conseguiram ter mais do que a Deolinda teve, por exemplo, no que diz respeito a conseguir frequentar a escola?

Sim, não tiveram muito mais porque os tempos eram difíceis, entretanto a minha mãe morreu. Eu tinha 19 anos e a minha irmã mais nova tinha seis anos. Foi assim, éramos miúdos. Fiquei sem chão completamente. Vi-me com 4 irmãos ao meu redor e com uma filha de um mês e meio.

Criei os meus irmãos sozinha. Ninguém me ajudou, nunca ninguém se chegou. Tive de trabalhar praticamente dia e noite para conseguir criá-los. Nessa altura já trabalhava nas limpezas. Entrava às 4 ou 5 da manhã, entrava num trabalho e saía para outro. Praticamente só ia a casa para ver os meus irmãos, dar-lhes de comer. O meu bebé ficava com a minha irmã.

Para além da responsabilidade de levar rendimento para casa, tinha uma série de outras responsabilidades que tinham a ver com o facto de ser a cuidadora de 5 crianças…

Tudo era pouco. Tinha todas as contas para pagar, comprava alimentos, chegava a meio do mês aflita e por isso ainda limpava escadas. Nos intervalos do trabalho ia com a minha supervisora a casa dar um olho nos miúdos para ver se estava tudo controlado, para depois voltar para o trabalho. Os miúdos na altura andavam na escola. A minha vida era isto.

E à medida que passaram os anos, quando é que a sua vida mudou e as coisas começaram a acalmar para a Deolinda viver também a sua vida e fazer as suas escolhas?

Ao longo dos anos, as coisas pioraram. Tive um irmão, que tem três anos de diferença de mim e que se meteu nas drogas e acabou numa cadeia aos 18 anos. Tenho o cabelo assim (muito comprido) porque foi uma promessa que fiz, depois começou a minha vida de andar entre a cadeia e cuidar dos meus irmãos.

Como é que estes acontecimentos da sua vida a influenciaram?

Eu considero-me uma guerreira, fiz-me uma mulher à força e acabei por conseguir, hoje sou uma grande mulher e uma grande mãe, mas podia ter tido um pouco mais. Não tive. Faltou-me a minha mãe, faltou-me tudo…. Fui criada praticamente por mim própria.

Hoje em dia, pensa que o seu esforço valeu aos seus filhos uma melhor qualidade de vida do que a que a Deolinda teve?

Sim. Eles têm de trabalhar e fazer-se à vida. Quero que tenham estudos, que tenham mais do que aquilo que eu tive. Eu não sou exemplo para eles, sinceramente, é o que eu lhes digo. Quero que sejam melhores do que aquilo que eu fui, porque eles têm hipótese e eu não tive. É a única coisa que eu quero para os meus 7 filhos.

A Deolinda reflete sobre o passado?

Sim, muito. Eu sou muito revoltada. Ainda ontem comentava com o meu primo “eu nunca me vou esquecer, tiraram-me tudo, não tive nenhuma oportunidade”. A determinada altura tive de pedir ajuda, eu própria me abri porque precisava de apoio. Eu esforcei-me tanto, mas também houve quem me tivesse “cortado” as pernas quando eu era tão jovem, por exemplo, o pai dos meus dois filhos mais velhos.

Para além do falecimento da sua mãe, qual é que foi o momento de viragem da sua juventude?

Foi aos 22 anos que eu voltei a cair, na altura estava com ele e já tinha os meus dois filhos, a Patrícia e o Miguel. Só recuperei aos 25 anos. Nós vivíamos na casa dos pais dele e ele consumia drogas, eu nunca, tinha de manter a cabeça sã por causa dos meus filhos e dos meus irmãos, mas acabaram por fazer uma rusga lá em casa e eu fui presa. O meu filho mais pequeno fez os dois anos na prisão comigo, hoje em dia tem 26 anos. No dia do julgamento, um ano e meio depois de ter ficado em prisão preventiva, como não foi nada provado, mas eu também estava lá, “levei por tabela”, só em julgamento é que ficou provado que eu não estava envolvida. Nunca mais consegui entrar numa esquadra. Quando saí, já os meus irmãos tinham seguido o rumo das suas vidas e não me deixaram ficar na casa da minha mãe com eles. Foi tanto sofrimento para os criar e depois eles não estavam lá para mim.

Deolinda Rocha tem uma incapacidade de 60% em consequência de um esgotamento. Para além do atual marido, que descreve como sendo “a sua força”, é atualmente acompanhada por um Centro Porta Amiga da AMI que considera como uma família. No Centro Porta Amiga faz recolha de alimentos, recebe apoio psicológico e, em conjunto com a equipa de técnicos do centro, resolve questões relacionadas com a segurança social e acesso a serviços públicos. “Qualquer problema que eu tenha é aqui que eu venho, à Dra. Mafalda ou à Dra. Maria João. Se precisar de ajuda, procuro-a aqui. Têm sido as melhores pessoas do mundo para mim”.

 


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