João Nepomuceno Baltazar de Lima, mais conhecido como João Afonso, fez da sua vida uma grande aprendizagem e ensinamento, principalmente musical, num percurso onde a arte é vida e conhecimento.
Semelhante a Zeca Afonso na voz e no idealismo, aos treze anos deixou-se contagiar pelo ambiente que o envolvia e abandonou os planos de estudar Agronomia para se dedicar à música “muito além da alma”. Para João Afonso, “a música, a arte, marcam o ritmo de uma sociedade”. Também influenciado pelo jeito de tocar guitarra da África Austral, sobretudo de Moçambique a sua música é uma união de culturas que ensinaram e formaram o homem e o músico, mas considera-se sobretudo “um autodidata com um percurso invertido”. Pois, primeiro, começou a tocar e a cantar, só depois começou a explorar e a aprender música e teoria musical. A arte foi a sua professora primordial.
A aproximação à arte-professora defendida por Zeca Afonso, seu tio, deu-se com o regresso forçado de Moçambique, em 1978, perante a ameaça da insegurança e da fome”. O fascínio pela música do tio estava em si guardado, desde o tempo dos almoços de família em terras africanas. “Um tempo em que a imagem do tio transformou-se numa espécie de endeusamento, pela arte, pelos ideais, pela exigência e profissionalismo que imputava na sua carreira musical” recorda João Afonso. Do contacto com Zeca Afonso ficou-lhe ainda o privilégio de privar com Fausto, Júlio Pereira, Janita Salomé e José Fortes.
Sente-se-lhe o orgulho na voz quando diz que é uma honra ser sobrinho de Zeca Afonso, mas sente-se igualmente, a firmeza do timbre quando afirma que faz questão de seguir o seu próprio caminho. Chegou a duvidar se deveria continuar a abraçar a música, por não saber se o público apreciava o seu trabalho ou a semelhança da sua voz com a de Zeca Afonso. “Até que ponto o êxito era porque as pessoas me apreciavam a mim, ou sobretudo apreciavam as canções do meu tio cantadas por mim, que tenho um timbre de voz ligeiramente semelhante ao dele?”, questionou-se. E “certas situações de pessoas a abraçarem-me e a chorarem colocaram em dúvida se eu não devia parar ali”. Mas, no fim, não tem dúvidas: “decidi bem, e não parei”.
Pela arte se aprende o que se pode viver
João Afonso considera que o seu tio “foi acima de tudo um humanista preocupado com as injustiças no Mundo e as suas poesias mais do que tudo são indicadoras disso mesmo”. Acredita que “movimentos como aquele que a geração de Zeca Afonso iniciou, criam uma cisão. Uma necessidade incontornável de mudança social”, afinal a arte tem o poder de transformar a matéria das coisas, dando-lhe formas diferentes a casa nova moldagem ou composição.
O legado de Zeca Afonso infiltrou-se por várias gerações, o que significa que, mesmo quem não foi seu contemporâneo, identifica-se “com o movimento, os valores do humanista, da fraternidade, igualdade. Porque querem justiça social. Isto é aprendizagem, formação pura. A arte é isso, uma professora da sociedade”.
João Afonso acredita que, se os acontecimentos de Abril se dessem hoje, “nunca seriam cantados exatamente da mesma forma. Estamos todos diferentes. Mais conscientes, mais capazes”. Ao mesmo tempo “estamos também mais permissivos, mais omissos.”
O músico alerta para a indiferença com a qual nos habituámos a conviver. “Quantas pessoas passam por nós todos os dias de manhã nos transportes, esmagadas pelo peso do trabalho duro que vão enfrentar; no fim do dia, com fome e exaustas, e muitas destas pessoas vieram de outro continente para ter esta vida aqui. Se fizeram essa viagem, tal como um dia a minha família fez a sua, é porque acreditam que, aqui, vão ter uma oportunidade para viver com dignidade. Isso devia ser motivo de honra e não de preconceito nosso”, afirma o músico.
“Ouvir mais música, sentir o seu ritmo, perceber de onde vem cada acorde, cada estrofe do poema que a acompanha pode ser o melhor ensinamento a tirar para destruir preconceitos, criar laços entre povos” e percebermos que todos estamos conectados e não separados. “O mundo de hoje mostra-nos isso, às claras, todos os dias e fomos nós que há muitos séculos o fomos provocar para isso”, para que as nações cruzassem conhecimentos, para que as culturas se misturassem e criassem novos saberes, da arte, à ciência. Então João Afonso questiona “se criámos nós, portugueses, o conceito de globalização, quem somos nós para agora negarmos acolhimento ao mundo?”.